Mundo cão

Conheci Sofia Aparício em Luanda. Nunca tinha estado com ela antes – e confesso que não tinha acerca dela grande opinião. Por nenhuma razão especial. Apenas por ter sido modelo – e as modelos serem pessoas que vivem da imagem, que muitas vezes vivem para a imagem, o que significa preocuparem-se obsessivamente com o corpo…

Eu vivo nos antípodas desse mundo. Claro que acho que as pessoas devem ter cuidados mínimos com a imagem, até por uma questão de brio. Ninguém gosta de parecer desleixado, pouco cuidado ou mesmo completamente fora de moda.
Mas isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é viver para o corpo.

Sempre achei que qualquer ser humano deve ter a pretensão de deixar marcas da sua passagem pela Terra. Ninguém deve andar aqui por andar. Deverá ter a ambição de ver coisas feitas com as suas mãos ou saídas da sua cabeça.

Quando era jovem, eu admitia ser carpinteiro. Acabei por formar-me em arquitectura, mas o objectivo continuou a ser o mesmo: fazer coisas, construir, inventar formas novas. E felizmente tive a sorte de assistir à construção de muita coisa concebida por mim: desde uma simples mesa a um edifício complexo. Considero isso uma dádiva. Ver materializadas obras que começaram por existir dentro da minha cabeça e que depois acompanhei até se tornarem objectos de uso quotidiano ou terem gente a viver lá dentro.

Um acaso fez-me trocar a arquitectura pelo jornalismo. Mas, nesta profissão, as situações de maior felicidade para mim são também aquelas onde o jornal ganha forma. As reuniões com os colegas para planear o produto final, o momento em que desenho a 1.ª página que irá para as bancas. E há ainda a emoção de ver o jornal a sair da máquina, com os títulos e as fotografias que escolhemos reproduzidas aos milhares e o papel a cheirar intensamente a tinta.

É a concretização ‘física’ do trabalho despendido. Só aí o trabalho ganha sentido. Até aí era como se não tivesse valor – porque ainda não se materializara em nada.
 
Vem isto a propósito do culto da imagem. O trabalho investido no próprio corpo serve para muito pouco. Até porque a idade vai avançando, o corpo vai envelhecendo, deixando de ter préstimo como objecto para mostrar ou desejar. E perde-se todo o esforço gasto nele até aí.

Claro que para muitas pessoas é importante a prática regular de desporto ou as idas ao ginásio. Fazem-no, porém, como meio e não como fim. Para se sentirem bem. Mas tornar isso o próprio objectivo da vida é uma perda de tempo e denota alguma pobreza de espírito ou ausência de horizontes. Daí eu não ter, como disse no início, grande respeito pelas modelos e por toda essa gente que circula nesse mundo em que tudo gira em redor da imagem. E, para mim, Sofia Aparício era um dos símbolos desse universo vazio.

Contactei com ela pela primeira vez, como disse, em Luanda, onde ela ia dirigir o Cyber Café do SOL. E a ideia que tinha a seu respeito modificou-se por completo.

Mostrou-se uma mulher descontraída, disponível, sem tiques de prima donna, pronta a fazer o que fosse preciso: até a tirar pingos de cola do chão!

Nas horas que antecederam a inauguração do Cyber, todos tivemos que fazer de tudo: atender fornecedores, mandar convites, carregar com pesos, embrulhar encomendas, limpar o chão ou os vidros das montras e das janelas. Pois Sofia Aparício abraçou todas essas tarefas sem um protesto, pelo contrário, sempre com um sorriso, uma energia transbordante e um entusiasmo inquebrantável.

E com companheirismo e espírito de equipa. Quando ia comprar alguma coisa para comer, fazia questão de trazer quase sempre um ‘mimo’ para os colegas, fosse uma sandes, um bolo ou uma bebida.

E mesmo em relação à imagem não lhe vi grandes preocupações. Claro que, quando ia jantar fora, se arranjava e podia pôr uma saia muito curta para dar nas vistas – mas percebia-se que o fazia mais por razões ‘profissionais’, por achar que era isso o que as pessoas esperavam dela, do que por uma preocupação obsessiva com a imagem e o corpo. «Aprendi a lidar com o facto de não me achar bonita mas a saber ficar interessante», disse numa recente entrevista à Tabu.

Esta entrevista, para quem não conheça Sofia Aparício, pode ter parecido calculista ou mesmo hipócrita, fingida. Mas eu reconheci nela a pessoa que tinha conhecido em Luanda: uma mulher lúcida, percebendo as regras do meio triturador em que tem vivido – o mundo da moda e do espectáculo – e tendo sobre ele um olhar desencantado. «A fama não é obrigatoriamente uma coisa boa. Não percebo que as adolescentes hoje queiram todas ser manequins», diz. Ou ainda: «É muito difícil ser quase criança e ser tratada como mulher adulta».

No próprio dia em que saiu esta entrevista tomei conhecimento pelos jornais do internamento no serviço psiquiátrico de um hospital de Lisboa da ex-modelo e actual apresentadora de televisão Isabel Figueira. Penso que, para ser internada de urgência, e numa ala psiquiátrica, não terá sido por coisa boa.

Foi provavelmente o resultado da acumulação de tensões, de angústias, de frustrações, de ilusões perdidas, dos traumas de um meio que usa as pessoas como pastilha elástica.

Cá e lá fora, o mundo do espectáculo não tem contemplações: promove as suas estrelas, endeusa-as, fá-las acreditar que são alguém – e um dia cospe-as, trata-as impiedosamente, quando acha que já não atraem audiências.

E, entretanto, elas deram cabo das vidas: tornaram-se caprichosas e gastadoras, casaram e descasaram, andaram numa vertigem de mão em mão, julgando que sabiam controlar as emoções. Elsa Raposo, Alexandra Lencastre, Merche Romero, Clara de Sousa, Marta Leite Castro, sabem bem o que isto é. Algumas conseguem recuperar o equilíbrio. Mas a maioria jamais reencontrará a paz.

«Tenho fascínio pelo abismo. Mas sou suficientemente espertinha para não ir sempre ao mesmo abismo», dizia ainda Aparício.

Isabel Figueira pode ser mais uma vítima desse mundo insaciável onde se cultivam ilusões, de que Sofia Aparício fala. Só que esta já descobriu onde está e quais são as regras do jogo – e Isabel ainda não. Talvez um dia descubra. E não seja tarde demais.