Uma Orquestra de todos

A percussão africana do guineense Gueladjo Sané batuca, em força. O brasileiro Marcelo Araújo atira-se à bateria. O espanhol Marc Planells dedala a cítara, o português Quiné está nos ferrinhos, entra o baixo do italiano Francesco Valente e estende-se a passadeira musical para a voz do brasileiro Max Lisboa entoar «Caiuuu água do céuuu».

 neste último dia de agosto, carregado de nuvens cinzentas, os guarda-chuvas pretos abrem-se no lisboeta e mal-afamado largo do intendente pina manique, lá fora, para onde dão as janelas do sport clube intendente, transformado em sala de ensaios, no primeiro andar de um prédio semi-abandonado. cai chuva do céu e o coração de max sangra, sangra sem parar, entre teclas, guitarra, o apoio de voz da cantora lusa susana travassos, as orientações dos italianos pino pecorelli e mario tronco, os ouvidos atentos dos que observam. assiste-se a mais um ensaio de um grupo de músicos de origens várias, a residir em portugal, que trazem para o colectivo os seus saberes e experiências. com repertório próprio, trabalhado em conjunto, procuram o seu som, a sua harmonia, para actuarem juntos – todos. a orquestra todos sobe ao palco pela primeira vez a 11 de setembro, às 21 horas, a fechar a 3.ª edição do festival todos, caminhada de culturas.

a data tem o seu quê de simbólico. foi depois de dois aviões terem destruído as torres gémeas, em nova iorque, que mario tronco, italiano de caserta, no sul de itália, compositor, maestro, elemento da «banda de autor» avion travel, avançou para um projecto pioneiro, em roma, na piazza vittorio. «a piazza vittorio era, há dez anos, como é o intendente. nessa praça, as casas eram baratas, havia prostituição, droga, imigração. formámos a orquestra logo depois do 11 de setembro – houve também um gesto político», recorda ao sol.

l’orchestra di piazza vittorio, formada por imigrantes e italianos, tornou-se, na última década, um fenómeno de culto, com três discos editados, tournées internacionais. e um símbolo do resgate dos músicos, que foi também o resgate de mario tronco. antes de se dedicar em exclusivo à música, ele vendeu carros, trabalhou num banco e distribuiu leite – até se render à ideia de que esse não era o seu caminho. «e essa é também a história da orchestra di piazza vittorio: a história do quanto é difícil ser músico de profissão. se pensarmos nos músicos que estão nos conservatórios, quantos seguem a profissão? pouquíssimos», responde.

em itália, criou um projecto com uma linguagem musical própria, em que se fundem sonoridades do norte de áfrica, das caraíbas, da ásia, da europa, das américas, oriundas do contributo que cada músico traz ao conjunto. em 2009, l’orchestra di piazza vittorio passou por lisboa, pelo mesmo largo do intendente, integrada na 1.ª edição do festival todos, caminhada de culturas.

o convite tinha partido de um dos programadores e produtores do festival, giacomo scalisi, que conta: «a ideia era, no meio de um ambiente hostil, com prostituição, droga pesada, trazer as pessoas de lisboa para o bairro e para o largo do intendente, que é um castelo fechado na cidade. lembro-me perfeitamente que o concerto era às nove da noite e cinco minutos antes da hora o largo estava vazio. as pessoas tinham medo de ir para lá, sobretudo à noite. chegaram todas ao mesmo tempo, às 21 horas, e foi fantástico».

para mario, «o público era igual à orquestra, era o seu espelho». começou então a germinar uma nova ideia. fazer uma orquestra em lisboa, mas não uma cópia da sua congénere italiana. «em portugal a imigração vem mais das ex-colónias, por isso será uma orquestra completamente distinta. há uma viagem que a cultura portuguesa fez em direcção às colónias e, no regresso, essa cultura voltou modificada. e, em portugal, dá-se outra transformação ainda, que vejo nesses músicos, homens e mulheres jovens, híbridos».

o coração de max lisboa sangra, sangra sem parar – canta o músico brasileiro, artista de rua, de show, e estudante, imigrado em portugal há sete anos, romison diogo dos santos, de seu nome de baptismo. saiu de minas gerais, mas não atrás de uma vida melhor, afirma. «eu tinha uma vida tranquila no brasil, não tinha muitas dificuldades. depois minha mãe veio para portugal – o meu irmão estava já cá – e falou para eu vir também», relata, entre tacadas de bilhar, numa das salas do sport clube intendente, em pausa de ensaios.

do brasil trouxe três anos de formação musical no conservatório, além do que aprendeu em casa, com o pai músico e a mãe cantora – e projectos musicais. em lisboa começou a estudar engenharia biotecnológica, que ainda não terminou, e toca na rua, acompanhando a voz com guitarra, harmónica e pandeireta. «toco na rua por necessidade financeira. os bares, infelizmente, não têm a cultura de pagar aos músicos o que eles precisam – não é nem o que eles merecem, porque merecem muito mais», remata. com actuações em «italiano, francês, espanhol, português, inglês, e imitações de louis armstrong e james brown», nas artérias movimentadas de lisboa que são ponto de passagem obrigatório de turistas – «são eles que pagam melhor» –, arrecada o suficiente para, por exemplo, pagar a faculdade.

e foi na rua também que aconteceram os convites. «em 2007 trabalhei com o pessoal do teatro o bando, com a peça em brasa, e já fui para fora, para espanha, alemanha, frança. e estava a cantar na rua quando fui convidado pelo francesco [valente]», baixista da banda terrakota, que foi o responsável pelo recrutamento dos músicos para a orquestra todos. mas foi max quem trouxe o romeno ali, cantor de rua (que também lhe faz as vezes de tecto), para a orquestra. «passei na rua, o ali estava deitado no chão».

na sala do sport clube intendente onde decorrem os ensaios, foram arredadas as cadeiras para o fundo, a mesa de pingue-pongue está a um canto, fechada, os troféus e as taças de uma vida desportiva frutuosa (já soma 78 anos) empilham-se numa vitrina. uma fotografia a preto e branco preside às provas musicais, pendurada ao centro numa moldura dourada, entre duas janelas. é de uma mulher bonita, sorridente – anita guerreiro, fadista, criada no intendente e frequentadora do clube, segundo lembra o sócio jorge silva. «no meu tempo chegavam a juntar-se aqui, depois do jantar, 50 pessoas, casais com filhos… não havia televisão», resume. hoje as salas enchem-se com a música e jovialidade dos músicos, objectos de curiosidade dos sócios que ainda ali passam para dois dedos de conversa ou uma partida de bilhar.

o romeno ali ocupa o centro da sala, quase que estrategicamente colocado sob a bola de espelhos. «tocar juntos é difícil», diz-lhe o maestro mario tronco, em italiano. mas ali parece inconsolável e continua sem conseguir acertar na nota certa – e não percebe o que o director da orquestra lhe tenta dizer. «precisamos de alguém que fale a língua dele», acerta o vice-director pino pecorelli, em inglês, para o espanhol marc planells. está erguida uma torre de babel no meio do intendente.

ali decide sair e, pouco depois, aparece mario no seu encalço. passam pelos homens que conversam junto ao que resta de uma fonte desactivada; passam pelas mulheres sentadas nos degraus de estabelecimentos comerciais vazios, ou encostadas a prédios, a vender o corpo para ganhar o pão; passam pelos agentes da autoridade; passam por quem atravessa o espaço alcatroado. e desaparecem. daquele primeiro andar do sport clube intendente, o olhar não os alcança mais.

é a vez de joão gomes, teclista filho de pai português e mãe moçambicana, tomar a palavra. deu as teclas a projectos como general d e os karapinhas, cool hipnoise, da weasel e, mais recentemente, orelha negra, cacique 97 e cais sodré funk connection. «só privei com a cultura africana dentro de casa, porque vivia numa zona em que era quase sempre o único mulato», lembra. com formação académica em piano, deixou de estudar quando deu o primeiro concerto, já lá vão 17 anos. «o general d convidou-me para fazer parte da banda dele, eram todos cabo-verdianos e angolanos. a partir daí comecei a dar-me com músicos africanos». vê-se mais como «um músico que toca teclado» do que como um pianista. produz e usa efeitos, é dj e prevê para a orquestra todos, para a qual foi chamado por francesco valente, «uma fusão de várias culturas, que vai muito além da cena lusófona. tem muito de oriental – há uma cantora indiana, um brasileiro que traz influências diferentes do convencional, um romeno, que acho que ainda ninguém percebeu muito bem de onde vem aquele tema que ele canta… não vai ser tão afro, mas mais eclética e do mundo, como é esta zona da cidade», em que ensaiam e onde joão vive.

escuta-se a voz cristalina da indiana rubi machado, que «veio aprender a tonalidade da música que vai interpretar», explica giacomo scalisi. o romeno ali regressou, sente-se melhor e nota-se-lhe outro alento. vai cantar. dança, bate palmas, rodopia, leva as mãos ao peito, à cabeça, aos céus, sacode os ombros num transe musical, como quem desfia histórias tristes de destinos traçados – dá o seu espectáculo, já na nota certa, embora não se lhe perceba palavra. isso está prestes a mudar: chegou a tradutora de romeno.

em minutos, ali fica a perceber o que tem de cantar, que vai ser pago pelo trabalho, que há roupa nova para ele vestir. do outro lado, fica-se a saber que ele se chama ali regep, dorme na rua quando não tem casa, conseguiu alugar um quarto no subúrbio, é casado com uma bailarina de danças indianas, tem quatro filhos – dois casados e dois pequenos –, todos na roménia. «e ainda quer uma menina», acrescenta a tradutora. talvez mais um nome para juntar aos que já lhe estão inscritos no peito, onde traz a família – jacnoris, hagi, chichi e melia.

fica também desfeito um mistério: que canção é aquela? «é um misto entre romeno e indiano». ali emociona-se e não tarda limpa as lágrimas à fralda da camisa preta. «ele escreveu esta canção por tristeza, pelo pai que morreu em 1990 e porque ficou com sete irmãs para criar. é uma canção para explicar a sua solidão. ele começou a cantar nessa altura», explica a tradutora. com o bilhete de identidade na mão, a atestar os seus 35 anos – que parecem ser muitos mais –, percebe-se que era um miúdo de 15 quando ficou só no mundo, com as irmãs para cuidar.

ali vai ser o convidado da orquestra todos e espera-se que suba ao palco no dia 11, vestido a rigor, com «figurinos muito simples, mas pensados para a orquestra», atesta giacomo. «estão a ensaiar 14 temas e vão ser entre 10 e 15 músicos», diz, já que as contas ainda não estavam fechadas na hora da reportagem.

para um cheirinho do que se poderá escutar, o italiano adianta: «a rubi vai cantar uma música indiana que o mario transformou num country. música do brasil, índia, áfrica e clássica vão misturar-se numa proposta do max que o mario modificou». o cabo-verdiano danilo lopes da silva, em portugal desde 2000, vai interpretar, além de três temas originais seus, «uma morna romena com letra em crioulo», como conta o próprio.

das 9h às 18h, danilo é analista informático – é o que lhe paga as contas. «a música não funcionava, não se recebe muito», dispara o guitarrista autodidacta das bandas refilon e danae. é em rajadas que fala: «já percebeu que eu gaguejo. mas falo pelos cotovelos», continua, imparável. se a fala de danilo é uma estrada esburacada, o seu canto é auto-estrada.

«a orquestra está a ser como uma limpeza do pó da música» – com a paternidade, o trabalho, o regresso aos estudos, as horas não esticam para tudo. e a orquestra todos surgiu como uma boa oportunidade.

danilo já tinha tocado com gueladjo sané, guineense de bissau a viver em portugal há 15 anos, onde é professor de djembé e vive da música, trabalhando em diversos projectos, como batoto yetu e djamboonda. na orquestra, tem a seu cargo «o tambor de água, ou tina, um alguidar em que se põe água e por cima uma cabaça, e a percussão africana, que é o djembé».

o pai também era músico e os genes musicais passaram – à força: «ele obrigou-me, aprendi com ele o tambor tradicional da guiné. depois fugi para a guiné conacri, onde aprendi djembé. porque queria ser o primeiro solista do ballet nacional da guiné-bissau». e conseguiu. em portugal conheceu a mulher, têm três filhos – um deles, que «está a fazer o curso de bateria e piano», acompanha o pai nos ensaios, silencioso e atento, tamborilando nos joelhos ao ritmo de sané.

no dia 11, às 21 horas, a música chega ao largo do intendente. estão já agendados mais dois concertos, para um projecto que se quer com futuro próprio: no são luiz, a 2 de outubro, e na gulbenkian, a 16 de dezembro. quem por lá passar compreenderá melhor as palavras de mario. «neste momento de crise económica, em que tudo fecha, fazer nascer uma orquestra é um milagre. e é coragem dar a estes talentos um palco, para se sentirem tão importantes como merecem». e é nesse milagre e nessa coragem que reside a grande provocação da orquestra todos.

ana.c.camara@sol.pt