A mesa com as Maravilhas do Minho

O caldo verde ascendeu a ‘maravilha gastronómica’. Figurava entre as iguarias descritas por Manuel Joaquim de Boaventura, um escritor minhoto quase esquecido que vale a pena descobrir.

desde o século xix a literatura portuguesa ganhou um conjunto valioso de relatos gastronómicos. o olhar atento dispensado às artes culinárias deve-se a escritores como garrett, camilo, eça, fialho de almeida, ramalho ortigão ou aquilino.

talvez por ser contemporâneo de alguns destes notáveis, os prazeres da mesa perpassam toda a obra de manuel de boaventura. em zé do telhado no minho (1960), por exemplo, descrevia o menu da estalagem da barca do lago: «o moreno arroz de lampreia – do de fugir pr’á cozinha, o capão de recheio, o anho ou trancão de vitela no espeto, o arroz de alguidar, colorido com açafrão e de aroma pascal, faziam o deleite dos glutões […]. tudo era de lamber os dedos». noutra ocasião, mencionava um jantar onde fora servido «um caldo de galinha que parecia trazer na orla pepitas de ouro».

manuel joaquim de boaventura nasceu em vila chã, concelho de esposende, no mesmo ano que aquilino, 1885. aos 20 anos, já com o diploma de professor primário obtido em leiria, era colocado na freguesia de palmeira de faro, onde começou a colaborar no semanário local. era o início de um percurso nas letras com mais de 30 livros editados e cerca de 250 artigos em diversos jornais e revistas.

a actividade literária complementava a carreira de professor, que o levou a trabalhar em viana do castelo, moncorvo, aveiro, leiria e guarda, onde se reformou em 1941. vivências diversas que não o desviavam das suas raízes. os costumes e tradições minhotas constituem o azimute da sua escrita, que inclui romances, contos populares e um vocabulário minhoto. em 2001 o xii congresso de gastronomia do minho foi dedicado ao escritor e na ocasião o professor albino penteado neiva fez uma recolha exaustiva que indica 76 referências culinárias divididas entre sopas, entradas, pratos de peixe e carne, e ainda sobremesas.

para este especialista na obra de manuel de boaventura permite «quase percorrer a gastronomia do minho, repartindo-a ao longo do ano, ligando-a aos ritos de passagem ou então às festas cíclicas». a estreia editorial de boaventura deu-se em 1909 com o romance o solar dos vermelhos, uma história de amor passada no século xviii. num banquete de casamento ali descrito desfila «a pescada de 15 arráteis [6,8 kg], daquelas gordas pescadas do ‘nosso mar’; viriam as carnes frescas do sarrabulho, aromadas com cominhos; as galinhas coradas no espeto da lareira; o anho do forno, recamado de cheirosas folhas de louro […] o arroz doce dos noivos; pudins que vieram do mosteiro; os suspiros de freira […] e outras especialidades da doçaria conventual».

apesar das múltiplas incursões gastronómicas na sua obra, manuel de boaventura não oficiava na cozinha. essa tarefa cabia a rosa ‘espanhola’, uma jovem de origem galega acolhida pela família.

«o grande prazer dele era ter a casa cheia com amigos e fazer refeições de convívio», lembra a sua filha, maria amélia de azevedo boaventura, a única descendente viva de cinco irmãos. manuel de boaventura morreu com 87 anos num acidente de viação a 25 de abril de 1973, juntamente com anselmo, o filho mais velho. maria amélia ia no banco de trás mas sobreviveu. nunca casou nem teve filhos e aos 98 anos continua a residir na casa da família em susão. na sala que em tempos foi o escritório do pai, poltronas clássicas ladeiam um canapé onde sobressaem as molas que durante décadas forçaram um tecido outrora estampado, agora sem cor, nem estofo para aguentar a passagem do tempo. um ambiente vetusto mas propício a conhecer um pouco mais do escritor. os seus óculos e ex-libris repousam sobre a secretária.

joão boaventura – neto de manuel joaquim – apenas conviveu com o avô até aos 10 anos, mas ainda guarda na memória a imagem do armário da sala de jantar. «o meu avô tinha vários frascos com pickles, molho inglês, piripiri, mandioquinha e outras coisas». o neto lembra-se de ele ser convidado para muitas festas populares, pelo que «tinha sempre um bloco no bolso onde anotava algumas coisas que comia, para depois explicar à rosa espanhola». a cozinheira foi aprumando a mão e fazia um caldo verde que joão recorda com saudade: «era tudo caseiro. as batatas, a água da fonte, as couves-galegas, um azeite muito fino e a chouriça». maria amélia sublinha: «cá em casa matavam-se três porcos por ano» e o sobrinho acrescenta que «a capoeira era larga e farta».

republicano convicto, manuel boaventura chegou a ser preso em 1912 sob a acusação injusta de ser conspirador. em 1932 recusou, com a humildade que lhe era habitual, o grau de oficial da ordem de benemerência. nas palavras de albino penteado neiva, o escritor «viveu simples e morreu simples». foi desta forma que redigiu um conjunto de obras que permite conhecer melhor o minho e as suas gentes.

em lapinhas de natal (1964), descreveu uma consoada minhota: «depois do bacalhau cozido com farelentas batatas, ovos e ‘tronchos’ de coivão da horta, seguia-se o ‘afogado’ [ensopado] de polvo, no seu molho vermelho, a saber a marisco e o arroz do forno, no alguidar tortêlho. a sobremesa era abonda. vinham os mexidos rescendentes a casca de limão, o arroz doce, com arabescos de canela, as rabanadas de molête, leite e mel; as filhozes levedadas; as castanhas, nozes e figos […]. tudo bem regado com o vinho quente, adoçado com o mel da algariça e perfumado a canela».

o empenho em contar e registar as tradições da sua terra foi reconhecido em 1996 quando a biblioteca de esposende recebeu o nome de manuel de boaventura. hoje, passados cerca de 125 anos sobre o seu nascimento, a nomeação das maravilhas gastronómicas constitui um bom pretexto para recordar a sua obra.