o estado-de-direito não é só aquele que é regido pela lei: é aquele constituído e integrado pela justiça, esperando-se que a lei seja justa; e, quando o não for, não será lei.
a preocupação com a justiça deve centrar-se nos direitos da pessoa: vida, integridade física, saúde, habitação, preservação do meio ambiente, crescimento económico, etc..
mas ao lado destes direitos propriamente ditos, existem outros institutos com dignidade semelhante, qualificados de garantias.
uma delas é a garantia contida no artigo 103.º, 3 da constituição da república: ninguém é obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da constituição e cobrados nos termos da lei. por outras palavras: há o direito de não pagar impostos inconstitucionais ou ilegais.
até aqui todos estarão de acordo. mas é aqui que os silêncios e as divergências surgem.
desde logo, o silêncio sobre este artigo. representa ele a consagração de um verdadeiro direito de resistência perante a agressão inconstitucional ou ilegal de um direito da pessoa. mas raríssimas obras se têm preocupado a aprofundar e densificar este direito. embora as que existem em portugal, e noutros países perante princípios materiais idênticos, sejam de elevado nível científico.
depois, há numerosas tentativas de afastar tal norma perante a conveniência do estado em cobrar impostos. alargando-se desmesuradamente a margem de incerteza/injustiça inerente a qualquer norma.
naturalmente que tal tentação, por muito explicável que seja, é totalmente inaceitável. o estado-de-direito-democrático-dos-cidadãos, sempre em construção e aprofundamento, é um elemento estruturante e fundamentante da nossa organização política e social, da nossa cidadania que nenhum interesse ou conveniência pode pôr em causa. em todos os campos, mas também nos impostos.
neste último campo têm-se desenhado, em diversos estados, tendências para preservar a política do facto consumado. cria-se um imposto, este é declarado inconstitucional algum tempo depois – dois ou três anos – e, alegando-se a dificuldade (‘impossibilidade’) de restituir as quantias indevidamente pagas pelos cidadãos, essas são retidas pelo estado.
este aceitar do facto consumado tem sido recusado por muitos juristas com base nos seguintes argumentos.
primeiro, a imposição constitucional (formal ou material) de que não há que pagar impostos inconstitucionais, tal como há que sofrer limitações inconstitucionais aos direitos, liberdades e garantias.
depois, porque os contribuintes têm o direito à restituição dos impostos indevidamente pagos e não são as necessidades financeiras do estado que podem cobrir ilegalidades.
finalmente, porque a tendência apontada facilitaria ao estado criar impostos abusivos e cobrá-los, com a certeza de que a declaração de inconstitucionalidade só actuaria para o futuro. desapareceria toda a garantia constitucional da legalidade e justiça dos impostos, pois toda a violência seria bem sucedida dentro do prazo de declaração de inconstitucionalidade.
acrescentar-se-á que é o mesmo estado que se julga a si próprio, embora em duas vestes. e faz suportar aos contribuintes os custos da sua demora. bastará que o órgão que julga a inconstitucionalidade decida muito rapidamente, para que o ‘inconveniente’ da restituição dos impostos desapareça.
em diversos ordenamentos jurídicos tem vindo a fixar-se a obrigatoriedade de devolver os impostos indevidamente cobrados. em outros, tende-se para a sua não restituição no caso de declaração de inconstitucionalidade.
parece-me claro, repito, que só a primeira corrente está de acordo com o estado-de-direito. mesmo qualquer disposição legal no sentido da não restituição será inconstitucional.
alias, dado o carácter muito abstracto dos princípios constitucionais, alguns deles com carácter meramente programáticos, fácil é criar impostos formalmente correctos e com um suficiente grau de justiça. o caminho da justiça está sempre a percorrer-se e a aprofundar-se. o que não se pode é voltar atrás, sejam quais forem os motivos. qualquer recuo, nomeadamente a retenção de impostos indevidos, tal como as delongas da sua restituição ou a lentidão do procedimento e do processo, são extremamente nocivos, pondo em causa a credibilidade de todo o sistema. e danificando insuportavelmente a cidadania fiscal.