Meryl Streep: ‘A minha sala de troféus tem 30 anos de poeira’

Meryl Streep veste a pele Margaret Thatcher em A Dama de Ferro, filme que estreia nesta quinta-feira em Portugal. A Tabu falou com a actriz, que procura o terceiro Óscar da sua carreira e no próximo dia 26.

se meryl streep ganhar o seu terceiro óscar, pelo desempenho em a dama de ferro, será mais uma aposta ganha de phillida lloyd, a realizadora lésbica que a convidou para cantar e dançar no mega sucesso musical mamma mia!. questionada sobre essa possibilidade, lloyd atirou: «se não for ela a ganhar, não estou a ver quem possa ser…».

aos 62 anos, depois de já ter vencido nove globos de ouro, em 26 nomeações, e numa altura em que cobra um cachê de cerca de 5 milhões de euros por filme, meryl estaciona na pole position para o prémio da academia. algo por que espera há precisamente 30 anos, depois de ter visto reconhecida a sua interpretação de uma judia forçada a optar pela vida de um dos dois filhos, em a escolha de sofia (1982). já tinha conquistado o primeiro óscar em 1979 por kramer contra kramer.

streep, curiosamente, começou a sua carreira no cinema precisamente quando thatcher chegou à liderança do partido conservador, em 1975. na altura abandonava a ideia peregrina de ser advogada ambiental e deixava-se seduzir pelo palco.

apesar dos óbvios elogios à actriz, o último filme de phillida lloyd, que estreia em portugal a 9 de fevereiro, não está isento de polémica. david cameron, o actual inquilino do n.º 10 de downing street, não deixou de criticar o timing errado ao abordar a vida de thatcher, alegando ser «cedo de mais». ao que a actriz ripostou: «por que não afirmou ele que deveríamos esperar que ela morresse? e como haveria ela de se sentir?».

no próximo festival de berlim (em fevereiro) receberá um prémio de carreira. isto além do globo de ouro e de continuar a ser uma crónica candidata aos óscares. por tudo isto, apetece perguntar: todos estes prémios e todo este reconhecimento ainda têm algum significado para si?

claro que têm. os prémios significam muito. quando somos nomeados para um óscar somos nomeados pelos actores. são os nossos colegas, que nos conhecem bem, que sabem quem somos e percebem aquilo que fazemos, que nos nomeiam. isso é muito importante.

vamos então ao filme. poderá dizer-se que esta é a interpretação mais conseguida da sua carreira?

foi seguramente a melhor oportunidade de interpretar uma vida inteira. de uma forma completamente subjectiva. ainda nunca tinha sentido isso.

o que a fascinou mais nesta mulher?

eu digo-lhe o que mais me interessou neste papel, e o que mais me surpreendeu. é que se trata de um filme sobre uma mulher velha, ao longo de três dias da sua vida. não será esse o tema mais desinteressante da nossa cultura, interpretar uma mulher velha? pelo menos para a cultura americana. é o que tem menos marketing, que chama menos a atenção, que tem menos valor em termos pessoais: uma mulher velha e gorda. acho que foi isso que me arrebatou.

vivendo nos eua, tinha a noção de que margaret thatcher era uma personagem tão controversa e que provocava tantas clivagens?

sem dúvida. em parte isso foi o que mais me interessou. trata-se de um filme sobre uma figura política, mas que tem uma história muito pessoal, uma dimensão quase existencial. o lado político serve apenas para acentuar as paixões dela e como era encarada. mas isso não tem a ver apenas com o lado puramente político da sua função. havia uma série de pessoas em redor dela que podiam andar na rua sem serem reconhecidas. só ela é que permanece tão odiada.

sentiu necessidade de recuar no tempo para a compreender?

ela era comparada a reagan, que na altura também não era muito popular [risos]. eu só via um tipo mal vestido e com o cabelo oleoso. nada mais. a ideia subversiva deste filme é que considera margaret thatcher como um ser humano. mais do que um ser político. que não é propriamente como pensamos nela.

de facto, percebe-se que o filme não aborda toda a carreira política dela…

sim, muitas coisas foram deixadas de fora. como o aprofundar da desavença com o ministro michael heseltine [uma figura influente do governo], os encontros com gorbachev, o envolvimento na campanha de libertação de pinochet. e muito mais. tive a oportunidade de ler muito sobre ela e isso fascinou-me: a forma como muitos políticos defendem um princípio sacrificando outros. pesam o valor de uma medida contra o valor de outra. não é isso que fazem os políticos?

diria que sim…

claro! thatcher, na minha opinião, tinha aquela obsessão por uma única medida. mas essa é uma força que inevitavelmente se esvai quando ouvimos outros argumentos que conseguem desfazer essa posição. o paradoxo é que é precisamente isso que as pessoas apreciam nos líderes. gostam de sentir aquela firmeza. não querem ver o barco do estado ser desviado por alguém com uma opinião diversa. preferem a visão voluntariosa. e ao mesmo tempo é essa a reacção que provocam quando não escutam e não se mantêm abertos ao diálogo.

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foi difícil para si encontrar o equilíbrio certo entre a dramatização e a interpretação da personagem?

é interessante porque existe muito material dela quando jovem, o que me permitiu retirar essa manifestação. foi importante encontrar esse lado, pois é importante perceber como ela era nessa altura. a grandeza com que demonstrava todas as suas opiniões, como jovem política, quase sem emoção. já numa época recente, mais velha, não existe nada. teve de ser tudo imaginado.

neste ponto, é importante saber: conseguiu ou tentou falar com margaret thatcher?

não consegui, nem quis. este filme é apenas uma imaginação do que seria o ponto de vista dela ao olhar para trás e recordar a sua vida. desse ponto de vista, senti-me totalmente livre. normalmente, ou interpreto uma ficção ou alguém que viveu. neste caso, vivi ambos os lados. tive de inventar a versão mais velha desta pessoa real. senti-me como eu própria.

como assim?

é que eu não me aproximo destas personagens de forma diferente de quando faço uma ficção. sinto a mesma coisa. como actriz casei-me com as paixões dela e as suas fragilidades. e tudo o resto me chegou pela interacção com as outras personagens. os outros actores deram-me tudo. o jim [broadbent, que faz o papel de marido no filme] deu-me tudo. deu-me o total conhecimento de como ele era e de como era para ela, bem como a olívia [colman], que faz de minha filha. deu-lhe aquela qualidade particular de mulher dedicada.

pode explicar um pouco como lidou com o charme dela? a verdade é que tinha um carisma muito particular e encantou homens como ronald reagan, gorbachev e mesmo françois mitterrand, ao contrário do que se passou com os políticos que estavam à roda dela. foi difícil suprimir esse lado do charme e humor?

ao entrar neste papel não presumi saber alguma coisa sobre ela. bem sei que existe uma opinião muito vincada sobre quem ela era. escreveu-se muito sobre margaret thatcher. e a expressão ‘sem sentido de humor’ é bastante frequente. mas nunca aparece em relação ao denis [thatcher, o marido]. por isso, tentei imaginar alguém que gostasse tanto de rir como ele. teria de existir nela algo que lhe desse algum charme. algo que ela precisava. nesse sentido falei com bastantes pessoas próximas deles, e acho que muita dessa falta de humor se devia ao facto de ter uma visão algo fechada do mundo. só conheceu um homem durante toda a sua vida. mas não era esse o objectivo dela, pois o seu objectivo era alcançar coisas. por isso não ria.

pois, era a ‘dama de ferro’…

é que as lágrimas e risos ficam mal a um primeiro-ministro que seja mulher. o churchill podia chorar que todos aplaudiam; mas se alguma vez thatcher chorasse isso seria imediatamente encarado como um sinal de fraqueza. e digo o mesmo em relação ao riso. não se diz que uma mulher a rir é uma mulher conquistada? toda a gente sabe que as mulheres apreciam os homens com sentido de humor. alguém que as faça rir. não digo que ela fosse espirituosa. mas acho que as pessoas têm tantos mistérios… e ela, em particular, por ocupar um lugar singular na história, seguramente sentiu durante toda a preparação para a liderança que tinha de ser assim.

thatcher governou numa altura em que podia mudar o mundo. como acha que se sentiria ela hoje neste mundo imprevisível e com esta crise global que não parece ser controlável?

é de facto um ponto de vista interessante. sobretudo pensando que nesse período não existiam computadores, não existia este mercado global, não existiam telemóveis. e numa altura em que o reino unido recuperava ainda de uma crise económica que fez com que as pessoas aceitassem que tudo fosse controlado pelo estado. mas sempre com grande pobreza. a verdade é que ela apresentou uma resposta, ainda que radical, mas que foi viável. por isso a elegeram três vezes. e o mundo mudou. e agora mudou outra vez…

já barack obama, outro líder que disse que mudaria o mundo dele, aparentemente está quase impedido de o fazer…

será que alguém é hoje capaz de controlar o quer que seja? estive recentemente na china e percebi que existe uma dezena de pessoas que vão controlar as vidas de 1,3 mil milhões de pessoas. bem como o nosso tesouro… [risos] será que é possível? eu acho que não.

só para terminar. está preparada para ganhar o óscar?

ganhar um óscar? eu tenho 14 discursos [de outras tantas vezes que foi nomeada] amontoados! acho que daria para fazer um livro… mas ainda sou capaz de escrever mais um…

tem mesmo os discursos guardados?

sim, não é hilariante?

e os seus dois óscares, onde os guarda?

estão em casa. em nenhum lugar em particular.

na sua sala de troféus?

… coberta de pó. com 30 anos de poeira.

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