a medicina é uma atividade centrada no princípio da beneficência, ou seja, é constituída por formas de ação com a intenção de beneficiar ou promover o bem de outras pessoas.
a medicina tem uma base científica, e essa base científica deve ser tida em conta na abordagem concreta de cada situação clínica.
dispomos hoje de evidência muito segura que aponta no sentido de numerosos tipos de intervenção, sejam medicamentosas, ou sejam de outra ordem, se associarem a alterações dramáticas na história natural de muitas doenças. os efeitos podem estabelecer-se no sentido de aumentar a sobrevida das pessoas com esta ou aquela doença, ou, em outros casos, diminuindo os sintomas, e portanto melhorando a qualidade de vida.
as guidelines ou recomendações clinicas surgiram como uma forma de integrar os conhecimentos médicos, os quais crescem a um ritmo muito elevado. segundo os seus defensores, teriam a possibilidade de melhorar a prática clínica, diminuindo os erros médicos, através de uma maior acessibilidade de dados atualizados colocados à disposição dos clínicos.
muitas guidelines não se assumem como normas imperativas, antes pretendem fornecer informação para ajudar o médico. não é raro que as guidelines sejam redigidas por pessoas com importantes conexões com a indústria farmacêutica e de dispositivos médicos (ver, a propósito, choudry e col., jama 2002; 287: 612-617).
qualquer entidade é livre de emitir recomendações, e existem múltiplas recomendações emitidas por entidades internacionais. mas, como qualquer guideline representa, mais do que qualquer outra coisa, um conjunto de opiniões baseadas num conjunto de factos, o que ocorre é que não é raro as opiniões sobre o mesmo assunto serem consideravelmente divergentes, desde logo por se valorizar de forma diferente os mesmo factos, ou por se valorizarem diferentes conjuntos de factos.
a medicina apresenta alguma tensão entre uniformização e individualização, seja no plano diagnóstico, seja no plano terapêutico, mas a evolução internacional no “mundo ocidental” tem sido predominantemente no sentido de aumentar o poder de decisão do doente (“empowerment”). as decisões devem, sempre que possível, ser tomadas tendo em conta as preferências do doente e a sua visão do problema em causa.
é sobre este pano de fundo que portugal assumiu, em maio de 2011, um compromisso com diversas entidades emprestadoras internacionais, sob a forma de um “memorando de entendimento”. no referido “memorando” constava, entre outros pontos relativos à saúde, o seguinte: “3.57. melhorar o sistema de monitorização da prescrição de medicamentos e meios de diagnóstico e pôr em prática uma avaliação sistemática de cada médico em termos de volume e valor, em comparação com normas de orientação de prescrição e de outros profissionais da área de especialização (peers).”…” sanções e penalizações serão previstas e aplicadas no seguimento da avaliação.”; “3.59. estabelecer regras claras de prescrição de medicamentos e de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (orientações de prescrição para os médicos), baseadas nas orientações internacionais de prescrição.”
na sequência da assinatura do “memorando”, teve início um processo de preparação de normas, as quais poderiam ser acopladas, atento o “memorando”, a um sistema de “sanções e penalizações”. é aqui que o assunto se torna mais controverso, tendo este processo o potencial para alterar significativamente a medicina portuguesa – a mesma que, quando é conveniente, se louva, seja nos seus resultados objetivos, seja no que respeita à avaliação internacional que da mesma é feita.
na verdade, o médico agindo como “provedor” do doente, providenciando conselho ou executando uma qualquer técnica, deve escolher aquilo que corresponde ao melhor interesse do seu doente, e não o que corresponde ao seu próprio melhor interesse. ora, a eventual existência de um sistema de normas acopladas a um sistema de “sanções e penalizações” pode levar a um dilema ético, podendo o médico optar por sugerir uma alternativa que não acredita corresponder ao melhor interesse do doente, mas que corresponde ao cumprimento de uma dada norma, permitindo-lhe colocar-se a salvo de “sanções e penalizações”.
um sistema de recomendações clínicas (“guidelines”) não deve estar ligado a um sistema de “sanções e penalizações”, competindo a cada doente, se pensar que o seu melhor interesse não foi tido em conta, recorrer às instâncias próprias – os tribunais.
podemos interrogar-nos em que outro país do espaço europeu poderá ter surgido a inspiração para exigir um sistema deste tipo (penso que será de colocar de lado comparações com outro tipo de experiências de organização do estado e dos seus respetivos sistemas de saúde, como será o caso da coreia do norte, de cuba, da síria, ou de myanmar).
ao tornar relativamente fixa, seja a prescrição de medicamentos, seja o pedido de meios complementares de diagnóstico, quaisquer normas contêm, salvo melhor opinião, um potencial enorme para aumentar dramaticamente os gastos com a saúde. por exemplo, se uma dada norma impuser análises semestrais para uma qualquer doença, pode acontecer que muitos médicos acabem por solicitar as análises em causa, mesmo que considerem inútil esse pedido.
pode ser implementado um sistema de exceções justificadas à aplicação das normas. contudo, os médicos poderiam não dispor do tempo adequado para andarem continuamente a justificar exceções, sobretudo se ocorrer uma discordância de fundo com uma ou mais normas.
em conclusão, enquanto que a evolução deveria ser de uma forma anacrónica de “paternalismo médico” para uma “medicina centrada no doente”, na qual grande parte das decisões deveriam competir a este último, vem agora o estado tentar impor uma “medicina normalizada” – a qual poderá representar um passo no sentido errado, uma vez que se baseia em princípios que podemos qualificar como controversos. para w.e. deming, “in god we trust, all others must bring data”. está por provar que esta reforma, apresentada no contexto de um quase colapso financeiro, na verdade leve a qualquer tipo de contenção de gastos, aguardando-se também dados relativos aos resultados clínicos e ao impacto geral sobre o sistema de saúde.