pregador sacro, foi também homem de acção e de política, pragmático e tenaz, um pioneiro, um visionário. nenhum outro conseguiu tal equilíbrio sereno mas engenhoso entre a orgânica cursiva das ideias e a propriedade e expressividade da linguagem, graças a um magistral domínio da língua. se não, faça-se-lhe jus e leia-se o seguinte fragmento do sermão do espírito santo, de 1657: «arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem; primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. aqui desprega, ali arruga, acolá recama. e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar». assim também e após séculos de recepção conturbada, renasce o padre antónio vieira e a sua obra, por fim em forma completa, num dos maiores empreendimentos da história editorial portuguesa.
30 volumes e textos inéditos
são 30 volumes, mais de 12 mil páginas, entre elas cerca de três mil traduzidas do latim e 3700 inéditas ou parcialmente inéditas, fruto do trabalho de uma equipa de 32 especialistas-coordenadores e 20 investigadores-assessores, portugueses e brasileiros. projecto liderado pela reitoria da universidade de lisboa, dirigido por josé eduardo franco e pedro calafate, investigadores desta universidade, e editado pelo círculo de leitores, a obra completa do padre antónio vieira será publicada ao ritmo de um volume por cada dois meses, até ao final de 2014.
a edição, destinada ao grande público, dividir-se-á em quatro tomos: epistolografia, cinco vols. de cartas; parenética, 15 vols. de sermões e oratória; profética, seis vols. de textos proféticos; varia, quatro vols. que incluem escritos dispersos e diversos, entre eles, textos poéticos, dramatúrgicos, de viagens ou apócrifos. acabam de chegar às livrarias o primeiro volume da epistolografia, composto por cartas diplomáticas (sobretudo dirigidas ao marquês de niza) e com coordenação de carlos maduro, e os volumes vi e v do tomo iii da profética, com coordenação de pedro calafate e contendo os livros primeiro, segundo e terceiro de a chave dos profetas, a obra magna de vieira (morreu enquanto a escrevia), pela primeira vez traduzida na íntegra do latim.
‘o melhor de’ em dez línguas
josé eduardo franco atribui a esta obra completa a afirmação de um «vieira global». explica: «vieira inscreve-se na melhor tradição universalista da cultura portuguesa. teve uma vida imensa, viajou por muitos países e adquiriu uma visão muito abrangente da experiência humana do seu tempo, cobrindo quase todo o século xvii e toda a humanidade então conhecida. a publicação completa da obra permite o entendimento global do seu pensamento e da sua intervenção missionária e diplomática». por outro lado, o projecto da obra completa terá uma segunda fase, de produção para fins pedagógicos de um dicionário multimédia dos grandes temas abordados e tratados por vieira, e uma terceira fase, de criação de uma selecta de 400 páginas dos melhores textos, traduzida em cerca de dez línguas (entre elas, o russo, o japonês e o mandarim). «infelizmente, nós, portugueses, somos mais diligentes a importar pensamento. revalorizar e internacionalizar a obra do maior prosador de língua portuguesa é fazer serviço, no contexto actual, aos grandes problemas da história da cultura».
em sintonia com uma histórica falta de investimento financeiro na edição de fontes primárias dos nossos grandes clássicos, o ministério ou a secretaria de estado da cultura apenas concederam a este projecto apoio formal no acesso a documentação. josé eduardo franco esclarece que a viabilização foi garantida pelo patrocínio do principal mecenas, a santa casa da misericórdia de lisboa, no valor total de 500 mil euros e disponibilizado até 2016.
indiana jones do seu tempo
tentada 15 vezes desde 1851, a edição da obra completa abrirá espaço para uma biografia completa. assim o deseja o romancista e ensaísta miguel real, autor de padre antónio vieira e a cultura portuguesa e do romance o sal da terra (sobre a vida de vieira). responsável pela introdução ao segundo volume de epistolografia, garante que este proporcionará, por exemplo, «um maior conhecimento da sua defesa dos índios do maranhão ou dos esforços de amigos em defendê-lo da inquisição». josé eduardo franco salienta que, a partir da obra completa, vieira poderá ser ensinado de outra forma nas escolas portuguesas, onde hoje surge apenas no 11.º ano, pela leitura obrigatória de excertos do sermão de santo antónio aos peixes: «a iniciação poderá ser feita, por exemplo, a partir das relações de viagens, que o mostram como uma espécie de indiana jones das missões e que dariam até um notável filme de aventuras».
missionário apaixonado, padre antónio vieira é também menos conhecido como político e crítico social, capaz de espantoso e ainda actualíssimo realismo. através das cartas, josé eduardo franco distingue-o mesmo como «pensador anti-crise», isto é, «preocupado com a história de portugal do momento, empenhado na viabilidade e independência do país e autor de ideias e sugestões completas».vieira criticou a intolerância religiosa, a corrupção ou as discrepâncias entre ricos e pobres, defendeu os índios e os judeus. muitas das suas propostas inovadoras soçobraram, «mas, pasme-se, o marquês de pombal, seu detractor, aplicará afinal muitas delas», firmando-o como um iluminista avant la lettre. em a chave dos profetas, descobrimo-lo também na plenitude da sua utopia profética reconciliadora dos homens. tal como defendeu o catedrático aníbal pinto de castro, vieira «projectou uma cidadania global do futuro». através da obra completa, poderemos por fim apreender a extensão da riqueza e coragem da sua cruzada.