Lou Reed: O fantasma do Rock

“A vida é boa, mas injusta”. Ouve-se no final de ‘What’s Good?’ e é a resposta – desarmante de simples – que Lou Reed encontrou para a morte no álbum conceptual Magic and Loss, de 1992. A perda de vários amigos inspirou-o, como já acontecera dois anos antes em Songs for Drella, disco de homenagem…

há muito que o estado de saúde era uma das suas maiores preocupações. longe iam os tempos dos abusos de álcool e de drogas, que terão terminado na segunda metade dos anos 70. mas o corpo há muito estava exausto. em 1996, num diário de uma digressão europeia que escreveu para a new yorker, as dores nas costas não o largavam. adoptou entretanto um estilo de vida regrado, praticava tai chi e uma alimentação saudável. mas o fígado fora-se. em maio, foi submetido a um transplante. aparentemente, recuperou. chegou a comunicar que era um “milagre da medicina, da física e da química” e que se sentia “mais forte que nunca”. mas lewis allen reed, lou reed para o mundo, acabou por morrer na manhã de domingo, em nova iorque, a sua cidade.

para os seus detractores, teve uma vida muito boa. acusam-no de ter feito fama à custa dos artistas de que se rodeou, de não saber cantar, de ter um feitio intratável.

t-shirt preta, olhar duro, por vezes soturno, assim era a imagem de marca do cantor, guitarrista e compositor que marcou a história do rock’n’roll desde meados dos anos 60, altura em que fundou os velvet underground com john cale.

um grupo que apresentou um som inovador, mas mais do que isso, que retratou de forma directa e crua personagens e situações limite de uma sociedade em transformação. enquanto os outros grupos cantavam sobre paz, amor e flores – a contracultura hippie –, os velvet underground ripostavam com sexo, drogas e rock’n’roll. todo um catálogo de marginais é cantado, do prostituto ao dealer, do toxicodependente ao pervertido sexual.

“de forma consciente tentei aproximar o rock da literatura”, disse numa entrevista ao le monde. na formação de reed teve um papel preponderante delmore schwartz, poeta e seu professor na universidade de syracuse. allen ginsberg, william burroughs, hubert selby ou nelson algren (o autor de a walk on the wild side) foram influências, tal como sorveu todo o ambiente avant-garde da factory, o mítico estúdio do artista pop andy warhol.

apesar do patrocínio de warhol, o sucesso comercial foi à época inversamente proporcional à influência do grupo, não só naquela geração, mas também nas seguintes. como terá dito o músico e produtor brian eno, o primeiro disco só vendeu 10 mil cópias, mas cada pessoa que comprou uma formou uma banda.

encerrado o capítulo velvet underground, reed fez uma pausa. aos 28 anos, regressou a long island, para casa dos pais – que na sua adolescência o internaram em instituições psiquiátricas para ‘tratar’ as tendências homossexuais com electrochoques, uma experiência que relata em ‘kill your sons’. foi trabalhar como dactilógrafo para o escritório de contabilidade do pai – mas não por muito tempo.

se nova iorque é a sua cidade de sempre – como explicou, com grande sentido de humor, no filme blue in the face –, foi em londres que se iniciou a carreira a solo. não sem antes uma falsa partida, num disco homónimo. mas aconteceu que david bowie, um fã de velvet underground, se cruzou com reed e se ofereceu para produzir um disco. o resultado foi transformer. além da transformação visual do cantor num “fantasma do rock”, como a editora publicitava, o disco tem algumas das músicas mais famosas da sua carreira, casos de ‘walk on the wild side’, ‘perfect day’ ou ‘satellite of love’.

de berlin, em 1973, a lulu, uma parceria com os metallica, em 2011, lou reed atingiu o estrelato e conseguiu manter a aura ao longo dos anos, mesmo com resultados, críticas e vendas em altos e baixos. nunca deixou de arriscar, fosse com a controversa colaboração com o grupo de heavy-metal, fosse com um disco cheio de distorção datado de 1975 (metal music machine), que alguma crítica qualificou de piada ao show-business, ou ainda com o último disco a solo, hudson river wind meditations, criado para acompanhar exercícios de tai chi.

entre muitos outros que conseguiram ultrapassar a carapaça de reed, além de warhol e bowie, três outras figuras merecem referência: rachel, uma misteriosa musa que viveu com o cantor em meados dos anos 70. assim como apareceu na sua vida, assim esta transexual desapareceu; a cantora e performer laurie anderson, sua mulher desde meados dos anos 90; e václav havel. após a queda do regime comunista, reed foi a praga entrevistar o líder da revolução de veludo para a rolling stone (não deixa de ser irónico, uma vez que as suas pegas com os jornalistas eram comuns). nasceu aí uma amizade muito especial com o presidente da checoslováquia e depois da república checa, que era fã de reed. como, aliás, muitos dissidentes que ouviam os plastic people of the universe, grupo checo que desde o final dos anos 60 fez eco dos sons da liberdade, de velvet underground a frank zappa.

nos últimos anos, além do tai chi e da meditação, o autor de ‘sweet jane’ dedicou-se à fotografia (no ano passado uma exposição sua fez parte do lisbon & estoril film festival). outro momento marcante das suas viagens a portugal foi o concerto de inauguração da casa da música, em 2005, com os clã.

o legado do “fantasma do rock” está aí. num documentário afirmou: “sempre achei que éramos os melhores. e continuo a achar”.

cesar.avo@sol.pt