‘O Papa arriscou a vida pela liberdade dos outros’

O papel do Papa Francisco durante a ditadura argentina foi alvo de equívocos. Desfeitos agora no livro ‘A Lista de Bergoglio’. O então padre provincial dos jesuítas salvou pelo menos dezenas de pessoas das garras dos militares, revela o jornalista italiano Nello Scavo.

foi na noite em que jorge bergoglio se apresentou ao mundo como francisco que nello scavo embicou com a biografia que os media faziam do novo pontífice. tinha acabado de escrever o primeiro texto sobre o assunto para o avvenire (diário milanês de inspiração católica) e a inquietação instalou-se.

“havia vozes estranhas no seu passado sobre uma alegada cumplicidade com os cabecilhas da matança argentina. na manhã seguinte, era claro para mim que as acusações contra bergoglio estavam fundadas em areia. obtive luz verde do director do jornal para aprofundar o tema, com o risco, claro, de que poderia sair algo comprometedor para o novo papa. pelo contrário, a investigação revelou um bergoglio inédito. surgiram os primeiros testemunhos das pessoas salvas durante a ditadura. não restava outra hipótese que não ir à américa do sul e remexer no passado”. o resultado está em a lista de bergoglio (ed. paulinas), que o autor apresentou nesta sexta-feira em portugal.

quando começou a investigação encontrou um muro de silêncio e de meias palavras. crê que este silêncio foi pedido pelo então padre provincial?

há muitas razões, algumas das quais acredito que permanecerão insondáveis. certamente o silêncio durante esses anos foi uma escolha estratégica: a única forma de salvaguardar o ‘sistema bergoglio’ e salvar vidas. acredito que a confidencialidade terá sido ditada pela humildade de bergoglio, ao mais clássico estilo jesuíta. não fez isto para se auto-elogiar – isto é apenas a minha dedução – dado o drama das famílias das 30 mil pessoas desaparecidas, a dor de mais de 15 mil sumariamente executados, a situação das crianças roubadas aos pais, dois milhões de exilados, em suma, perante todo este sofrimento bergoglio considera a sua acção, bem como a dos jesuítas, de relativa importância.

a imagem pouco clara do seu papel nos anos da ditadura fez com que fosse depor em tribunal em 2010. crê que foi uma humilhação para o então arcebispo?

não acho que tenha sido humilhante, porque no final bergoglio surge como uma figura surpreendente. durante o interrogatório, que publicamos pela primeira vez no livro, bergoglio confidenciou as preocupações e medos. e explicou aos magistrados como usava estratagemas para obter informações sobre os sequestrados para depois agir em conformidade.

o caso que mais dúvidas levantou foi o da prisão dos jesuítas franz jalics e orlando yorio. eles só perceberam muitos anos mais tarde que bergoglio fez de tudo para salvá-los.

toda a questão é reconstruída no livro. em resumo, posso dizer que yorio e jalics foram enganados pelo regime e que algumas divergências que tinham com bergoglio foram utilizadas pelos militares para lançar suspeitas sobre o padre provincial dos jesuítas. após uma pesquisa extensa, jalics convenceu-se da não participação de bergoglio, que, como se conta no livro, tentou a sua libertação. na verdade, existem poucos casos de sacerdotes presos, torturados e posteriormente libertados.

a lista de bergoglio é uma analogia com a ‘a lista de schindler’. só que este salvou mais de mil pessoas, bergoglio, dezenas. acha que é uma comparação justa?

só bergoglio pode saber com mais precisão o número de pessoas que ajudou. os testemunhos que recolhi apontam para várias dezenas. um deles, sergio gobulin, fez uma observação interessante: tendo impedido que muitos jovens tenham ido parar à cadeia, bergoglio evitou que estes, sob tortura, envolvessem dezenas e dezenas de outros. é por isso que é correcto dizer que bergoglio salvou directa ou indirectamente centenas de pessoas.

bergoglio arriscou a pele para receber todos os tipos de pessoas no colégio jesuíta, ocultou fugitivos, transportou-os no seu carro. tomou o lugar de capelão militar do ditador videla para interceder por jalics e yorio. foi um herói?

normalmente, o padre provincial dos jesuítas escondia fugitivos no colégio maximo, em san miguel, a cerca de 30 km de buenos aires. ali apresentava-os aos confrades jesuítas como jovens em ‘retiro espiritual’. e durante esses ‘retiros’ bergoglio gizava o melhor plano para continuar a mantê-los afastados dos militares ou ajudá-los a fugir para o estrangeiro, correndo altíssimos riscos pessoais. não perguntava pelo cadastro ou pela certidão de baptismo das pessoas a ser protegidas. quem foi ajudado lembra-se de bergoglio como um homem livre, que arriscou a vida e reputação pela liberdade dos outros. com alguns deles manteve uma relação de amizade e, em muitos casos, de pai espiritual.

um aspecto pouco conhecido do papa francisco é o de ter desempenhado o cargo de reitor in pectore (na sombra) da universidad del salvador, e aos alunos dizia “no te lo creas” – não acredites.

é uma grande lição de vida. bergoglio avisou os alunos, instando-os a não darem por adquirido terem compreendido tudo, e ao mesmo tempo chamava a atenção para não acreditarem em tudo o que se passava à volta, uma vez que a secreta da junta militar estava sempre à espreita.

este trabalho quase silencioso e eficiente do padre jorge só agora veio à tona. muitas pessoas dizem que pertence ao carácter jesuíta fazer o bem, mas em silêncio, não responder a falsas acusações… é por isso?

de certeza que não dirá, ante toda essa dor que ainda se vive hoje: ‘vejam, fui um herói’. seria ridículo e patético. e isto, em comparação com outros clérigos que, naqueles mesmos anos, foram cúmplices ou optaram por não tomar partido, só o agiganta.

cesar.avo@sol.pt