Ninfomaníaca, de Lars Von Trier, já está nos cinemas

O realizador dinamarquês regressa com Ninfomaníaca, já nas salas de cinema. A pulsão sexual da protagonista é o motor para um filme que vive além das já famosas cenas explícitas.

pergunta recorrente nos blogues, caixas de comentários dos jornais online e nas redes sociais: como é que lars von trier pretende chocar alguém com sexo em 2014, quando o acesso à pornografia está à distância de um clique? é verdade que nos países em que ninfomaníaca for distribuído isso é uma realidade. mas levar a discussão para esse plano é duplamente redutor. porque o filme é bem mais do que as cenas com conteúdo sexual explícito e porque o choque do público é um objectivo que o realizador persegue desde o seu primeiro filme – e que teve o seu ponto alto (ou baixo, consoante a perspectiva), no radical anticristo e nas declarações de suposta simpatia a hitler que lhe valeram ter sido considerado persona non grata no festival de cannes.

a fama precedeu ninfomaníaca, graças ao tema, sempre vendável, e também à forma como as imagens e os posters foram aparecendo na internet e nos media (até como contraponto ao silêncio a que se remeteu trier desde a referida provocação sobre o nazismo).

ninfomaníaca, desde ontem nos cinemas portugueses, está dividido em duas partes (com o volume 2 a estrear-se no dia 30), e tem menos hora e meia do que a versão do realizador, a estrear-se no festival de berlim, em fevereiro. estamos, portanto, perante metade de uma obra já de si cortada. não que isso se note, atenção. a estrutura da história, em oito capítulos, permite a divisão da narrativa sem grandes sobressaltos. aqui se conta a vida de joe, que se confunde com a da sua hipersexualidade (ou ninfomania, segundo a própria), ou não começasse por referir que tinha descoberto o seu sexo aos dois anos.

joe – um nome masculino – é interpretada pela estreante stacy martin nos anos de juventude e pela actriz que tem acompanhado os últimos filmes do dinamarquês, charlotte gainsbourg. é a filha de jane birkin e de serge gainsbourg quem aparece no início, deitada no chão, ferida, à mercê da neve. e que o cavalheiro seligman (stellan skarsgard, outra presença assídua na filmografia de trier), vai levar para casa e tratar. na cama como se estivesse no divã, joe conta a história da sua vida ao freudiano seligman (em dado momento, a personagem diz que o significado do seu nome é ‘alegria’, freude em alemão, e não seligman).

ao ouvir as histórias de excessos, o psicanalista de ocasião tem sempre na manga uma justificação racional, intelectualizada e por vezes ridícula, da sequência de fibonacci à polifonia de bach, do delirium tremens de edgar allan poe à forma como as pessoas cortam as unhas. como por exemplo, no capítulo um, em que a adolescente joe aceita o desafio da amiga b. e participa numa competição em quem teria mais parceiros sexuais durante uma viagem de comboio, tendo como prémio um saco de bombons. para seligman, a história da ninfa fez-lhe lembrar um dos seus livros favoritos, um manual de pesca, e as técnicas da pesca com mosca (que simulam as chamadas ninfas, insectos em fase pós-embrionária) nos rios, mas não associa o nome ao significado mais comum, as divindades da mitologia grega. o contraste não podia ser maior com joe, que, apesar de ter estudado medicina, ignora as referências culturais de seligman.

as interpretações dos protagonistas seguram o espectador – stacy martin, até então modelo, é uma surpresa –, mas há que destacar também o papel de uma thurman (deixando christian slater e shia labeouf, os outros actores norte-americanos, num patamar bem abaixo), num quadro de tragicomédia particularmente feliz.

coleccionadora de momentos sexuais, joe pertencera a um clube feminino que tinha como princípio não repetir homens e desprezar o amor, “que é sexo mais ciúme”. mas se depreendemos que joe caminha para um vórtice autodestrutivo no volume 2, ficam algumas interrogações sobre a personagem e a sua constante demanda pelo sexo – e a sua solidão.

a excitação à volta do filme justifica-se, mas não pelas imagens protagonizadas pelos duplos, profissionais do sexo. como disse stellan skarsgard em entrevista ao guardian, “na realidade, como filme pornográfico é realmente mau (…) (as cenas explícitas) tornam-se tão naturais como ver alguém a comer uma tigela de cereais”.

cesar.avo@sol.pt