“A ideia inicial (do filantropo) era a de ir a leilão e comprar as obras mas é difícil, senão impossível, garanti-lo, mesmo com recursos financeiros”, explicou por telefone Cabral Nunes, que se encontra numa feira de arte na Índia. Se o Estado português mantiver a posse das obras, estes mecenas (que por razões óbvias não querem ser identificados nesta fase) estão interessados em ajudar a gerir as obras, como acontece em grandes museus internacionais. “É demonstrável que em três, quatro anos esta colecção gera mais retorno do que a venda. Até em termos financeiros é um erro vendê-la”, diz o também director da Casa da Liberdade – Mário Cesariny.
Após meses em banho-maria, desde que em Julho de 2012 a então secretária de Estado do Tesouro Maria Luís Albuquerque anunciou no Parlamento a venda em leilão das obras de Miró provenientes das várias sociedades afectas ao BPN, os últimos dias foram de contra-relógio aos que tentam contrariar um facto que há muito parecia consumado. Hoje mesmo, por iniciativa de Os Verdes, os deputados votam nova resolução para suspender o leilão da Christie’s, marcado para 4 e 5 de Fevereiro, em Londres. Já o haviam feito na sexta-feira passada, tendo então a maioria PSD-CDS impedido a aprovação das resoluções de PS e PCP.
Mas o quadro alterou-se de então para cá com a audição parlamentar. “Foi um momento muito esclarecedor”, comenta a deputada de os Verdes Heloísa Apolónia, tendo em conta os depoimentos de Cabral Nunes, do crítico de arte Rui Mário Gonçalves e do director artístico do Museu Colecção Berardo, Pedro Lapa, ouvidos em sede de comissão parlamentar. “Há a possibilidade de despertar os deputados para a matéria”, disse Apolónia, esperançada de que a Assembleia da República “possa ser um travão para um negócio ruinoso”.
Alerta para ilegalidades
Em sede da comissão de Educação, Ciência e Cultura, os especialistas não só se mostraram contra a perda de um bem valioso que passou para a propriedade do Estado, como deixaram dúvidas sobre a cobertura legal da saída das obras de Portugal, tendo em conta que não foram inventariadas, nem foi dado aval por parte da Secretaria de Estado da Cultura, uma vez ouvidos os técnicos da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), entre eles o próprio Pedro Lapa.
O curador entregou o seu parecer, negativo, à SEC no dia 15, altura em que os quadros já poderiam estar em Londres, uma vez que desde dia 20 estão em exposição para os interessados. Ao SOL, uma fonte garantiu que os quadros estão desde Dezembro na capital inglesa. A esse propósito a relações públicas da Christie’s – a empresa que teve a cargo o transporte e o seguro das obras – recusou facultar qualquer informação.
Quem deu a ordem para a saída das obras de Portugal é a pergunta sem resposta, uma vez que quer a DGPC, quer a Secretaria de Estado da Cultura não responderam às perguntas endereçadas pelo SOL. A única declaração que o secretário Jorge Barreto Xavier produziu a este propósito deu-se há duas semanas em Nova Iorque, à Lusa, e na qual disse que a polémica “é um exercício de falta de memória” e confirmou que “não é, de facto, uma prioridade para um país como Portugal comprar ou manter este activo”.
O Partido Socialista queixa-se de opacidade do Governo: “Quando o Governo resolveu a questão da titularidade das obras colocou as obras em Inglaterra. Este processo tem falta de transparência. O Governo não pode vender bens que não foram inventariados pela entidade competente, a DGPC. Temos a certeza absoluta de que a venda está a ser feita de forma irregular”, explicou Gabriela Canavilhas ao SOL, após ter anunciado a providência cautelar, que deu ontem entrada no Tribunal Administrativo de Lisboa e que tem como objectivo suspender a venda dos quadros.
Apreciação diferente é feita pelo administrador da Parvalorem, a empresa pública que tem a cargo a gestão dos créditos após a reprivatização do BPN. “Não nos podemos pronunciar sobre as afirmações da ex-ministra ainda que a leiloeira internacional escolhida e que detém uma experiência mundial neste tipo de assuntos não tenha reconhecido essa eventualidade”, esclareceu Francisco Nogueira Leite.
A colecção fazia parte de outra maior, do japonês Kazumasa Katsuta. Era constituída pelas 85 obras que ficaram na posse do BPN, outras 23 foram cedidas à Fundação_Joan Miró por Katsuta e a outra metade da colecção está nas mãos da família do nipónico.
Os portugueses nunca tiveram a oportunidade de saber de que colecção se tratava – apesar de ser um bem do Estado –, mas algumas das obras saíram do país no final de 2008 para uma retrospectiva de Miró patente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Valores díspares
A leiloeira Christie’s fez saber que espera um encaixe mínimo de 36 milhões de euros. Um valor bastante abaixo dos 150 milhões aventados em 2008, quando a administração do BPN presidida por Miguel Cadilhe anunciou a venda de “activos extravagantes”. No entanto, esclareceu ao SOL Renato Homem, um dos administradores à época, o valor das obras para fins de seguro, em 2007, era de 81,2 milhões de euros. Uma avaliação feita pela mesma Christie’s que tem hoje os quadros para leilão.
“O valor de troca é absolutamente diminuto, seja bem vendido ou não. O seu valor desaparece num instante, enquanto as obras apresentadas ao público permitem formação continuada e usufruto”, comenta Pedro Lapa. Já Heloísa Apolónia menciona a “dinamização da economia” que o fluxo de visitantes poderia trazer. “A exposição destas obras seria a mais vista de sempre em Portugal, não tenho quaisquer dúvidas”, diz Cabral Nunes.
E afinal, qual o interesse da colecção? Para o antigo administrador do BPN José Lourenço Soates, os quadros “do ponto de vista artístico e de qualidade são fracotes” (afirmou em sede de comissão parlamentar). Mas os especialistas têm opinão contrária. “É uma colecção que tem obras de grande, grande qualidade, a par de outras secundárias”, comenta Pedro Lapa. O antigo director do Museu do Chiado não esconde a indignação com o processo: “Esta situação abre um precedente gravíssimo: trata-se de venda de património que é público. A partir do momento em que todos fomos chamados a pagar a nacionalização do BPN, a colecção passa a ser um bem público e obviamente tem de ser classificada porque faz parte da lei”.
O galerista Cabral Nunes lamenta que só agora haja debate público. Mas acredita que esta “não é uma causa perdida” e que a “humilhação internacional” a que Portugal está sujeito pode ser revertida. A deputada Gabriela Canavilhas também espera que a decisão do tribunal obrigue à suspensão da venda e à inventariação e classificação dos quadros “por técnicos e não por governantes de turno ou contabilistas”.