«Quando se está no meu país, tudo faz sentido de forma simples e clara. É o lugar mais franco da Terra». O país de Jun Do é a Coreia do Norte governada pelo querido e supremo líder Kim Jong Il, desde 1994 até à morte, em 2011. A franqueza de que Jun Do fala é a alucinação sistematizada com que este regime feroz vigia e manipula a identidade de cada um e a verdade de tudo. Então, como descrever o que não se vê e dar voz ao que não se ouve, com a máxima fidelidade? Investigação, investigação, investigação, e muito talento. É esta a chave de Vida Roubada, Prémio Pulitzer 2013, o romance no qual um norte-americano criou o mais poderoso retrato da nação mais oculta do mundo, a partir da figura de um nativo: Jun Do, filho do guardião do orfanato Longos Amanhãs.
Adam Johnson (n. 1967) estudou jornalismo e ensina escrita criativa na Universidade Stanford. Por isso, The Orphan Master’s Son (título original) faz uso exemplar de várias técnicas e registos ficcionais para moldar um volume notável de informação, incluindo a resultante de uma visita orquestrada a Pyongyang. Em entrevista, o autor explica que Jun Do, erradamente tomado por órfão, é como «uma ardósia vazia» porque, em simultâneo, representa e questiona todas as diferentes realidades do país.
Em duas partes, surgem várias versões para a vida do protagonista: a do próprio, a de um interrogador da polícia secreta e a da voz patriótica que, dos altifalantes, debita «a melhor história norte-coreana do ano». Jun Do (traduzível como zé-ninguém) será um jovem guerreiro nos túneis sob a Zona Desmilitarizada, depois raptor de japoneses, monitor de transmissões num barco de pesca, tradutor diplomático num rancho texano, prisioneiro num horrendo campo de mineração, finalmente, o impostor que se faz passar pelo maior rival do líder e é sujeito a tortura. No peito, traz tatuado o rosto de uma actriz que não conhece, mas pela qual lutará, vencendo até os limites da resistência física e psicológica.
Adam Johson mostra como, num Estado totalitário, a história individual e a história factual se tornam puras bizarrias. Imparável, este romance comove, repugna, suspende, faz rir, é uma epopeia tão bem construída e elegante como um grande clássico. Não deixem de o ler.