Os que voltaram as costas à guerra colonial

Algures entre a obra-prima de Lev Tolstói (Guerra e Paz) e a comédia de Woody Allen (Nem Guerra nem Paz, tradução de Love and Death) há agora o documentário de Rui Simões. Guerra ou Paz trata dos portugueses que optaram por não ir para a guerra colonial.

Refractários, desertores, heróis ou traidores… consoante o ponto de vista, uns cem mil portugueses saíram do país para não pegarem em espingardas, um número semelhante ao que foi combater. “Entre 1961 e 1974 dá-se uma fractura muito grande na sociedade. Os jovens ou fugiram ou estão na guerra. E as mulheres e namoradas também saíam”, comenta Rui Simões. Um tema que para o cineasta ainda é “tabu na sociedade portuguesa”.

“Ainda hoje só se fala da guerra do ponto de vista dos militares, dos que fizeram a guerra. Acho muito bem, eles merecem, deram as suas vidas e lutaram por uma ideia de pátria. Mas também há outros que lutaram por outra ideia de pátria. O filme quer dar um sentido histórico da descolonização, organizá-lo do ponto de vista de quem não foi à guerra, bem como dos seus filhos”.

Daí que Simões inclua um depoimento de Eduardo Lourenço sobre o terramoto social que é a descolonização à escala global, daí que dê voz também a uma filha de um emigrante, a activista Myriam Zaluar, e à carta aberta que esta endereçou ao primeiro-ministro.

O filme debruça-se, porém, em nove histórias contadas por dez pessoas, Rui Simões incluído, umas mais anónimas, outras mais conhecidas, como o músico Luís Cília ou o arqueólogo Cláudio Torres. Uma opção que é justificada pela necessidade de se mostrar “solidário com os outros” refractários. Rotula a sua história de “banal”, em contraponto com a “história fantástica” que foi a partida acidentada de Cláudio Torres e da sua mulher Manuela, então grávida, de barco. Mas, ainda assim, recorda que os filhos, nascidos no exílio e regressados a Portugal muito novos, ainda hoje o “chamam à pedra” por terem ficado sem pai durante esse período da vida.

O lado angolano

Guerra ou Paz apresenta ainda testemunhos de quem, em Angola, tenha recusado fazer parte do Exército português. É o caso do testemunho desassombrado do professor universitário Arlindo Barbeitos, ou de Manuel dos Santos Lima, fundador do Exército Popular de Libertação de Angola e depois crítico do regime angolano, radicado em Portugal.

Apaixonado por arquivos (o seu primeiro filme, Deus Pátria Autoridade é feito à base de imagens de arquivo), Rui Simões contextualiza este período histórico com imagens raras, como a de um Salazar à beira do fim, que “mostra a decadência de uma pessoa que querem manter e enganar”.

O autor, de 70 anos, produziu duas obras que o notabilizaram, mas que também o deixaram ostracizado: Deus Pátria Autoridade e Bom Povo Português. Este último, refere, é objecto de teses de doutoramento em França, mas por cá teve uma “carreira perigosíssima”. “Chamaram-me de comunista, coisa que nunca fui, e o filme foi vítima de uma censura violentíssima. Estive 22 anos sem filmar”.

Desta vez, crê que nada disso aconteça, até por acreditar que “ninguém vá ver o filme”. Mas, ironias à parte, o realizador gostaria que Guerra ou Paz proporcionasse uma janela de debate. “É uma forma de as pessoas explodirem o que têm dentro delas. A guerra colonial foi há 50 anos e criou feridas, como qualquer outra guerra ou conflito. O 25 de Abril tem mágoas de todos os lados. Eu estou magoado com o 25 de Abril, mas se calhar a família Champalimaud também está. Estamos todos magoados. Mas se não fizermos nada para sair deste impasse não há evolução”, conclui.

Amanhã haverá uma projecção do documentário em Abrantes, com a presença do realizador, e dia 21 a 27 no Teatro do Bairro, em Lisboa (consultar a página da produtora, www.realficcao.com). Paralelamente, o lançamento do correspondente DVD faz-se nas lojas Fnac, começando no Chiado, dia 15.

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