Desencanto sul-africano

Pela primeira vez, os born-free – a geração dos ‘nascidos livres’ que apenas conhece a África do Sul sem as algemas do apartheid – poderão votar. As eleições gerais de hoje serão ainda as primeiras no país órfão de Nelson Mandela, a braços com o desencanto das promessas por cumprir ao fim de 20 anos…

Os sul-africanos comemoraram também uma data histórica esta semana. O 27 de Abril, Dia da Liberdade, recordou o feito inédito de 1994, quando a maioria negra pôde ir às urnas. Foi o culminar de uma revolução política – inesperada para os profetas da guerra civil. Mas a revolução social e económica é ainda, para muitos, um compromisso adiado, num país onde se alargou o fosso entre ricos e pobres, brancos e negros, 9% e 80% da população.

A elite branca, que dominava a nação, não desapareceu: apenas teve de arranjar espaço para acomodar no poleiro uma nova elite – a negra. Em quase 20 anos, e segundo o Censo 2011, há mais pessoas com acesso a água (92% contra 10% em 1994) e a electricidade (85% contra 58%), e foram construídos três milhões de casas, mas os que ficaram de fora estão cansados de esperar. Multiplicam-se protestos reprimidos pela Polícia.

O rendimento anual dos sul-africanos livres e iguais perante a Constituição ainda se tabela consoante a cor da pele: negros somam pouco mais de 4 mil euros, brancos dominam com mais de seis vezes esse valor, 25 mil euros.

Eleições previsíveis

“O momento mais crítico para os movimentos de libertação africanos surge quando estão há 15, 20 anos no poder. Aqui acontece o momento crítico por causa da falta de mudança no sistema económico”, defende Moeletsi Mbeki, economista político, ao Guardian.

Também o desemprego enfatiza o facto de a África do Sul ser um dos países mais desiguais do mundo: segundo o Censo 2011, 35,6% dos negros estão desempregados, comparando com 5,9% dos sul-africanos brancos. Os tempos de exclusão com base na cor da pele foram substituídos pela exclusão económica.

Curiosamente, a base do eleitorado do ANC (sigla inglesa de Congresso Nacional Africano) são os desempregados. Histórico na luta contra o apartheid, dominou todas as eleições desde 1994 e é o previsível vencedor, pela quinta vez consecutiva – com a diferença de que há agora mais contestação nas ruas.

As sondagens dão-lhe vitória na ordem dos 65% (em 2009 o ANC teve 66%), prevendo um segundo mandato para o Presidente Jacob Zuma. Já em 2009, pendiam sobre ele acusações de corrupção – que foram retiradas. Isso não o impediu de ser o eleito, tal como deverão ter efeito nulo os 16,5 milhões de euros do dinheiro dos contribuintes que gastou em renovações na sua casa de campo. A seu favor, o PR tem os 16 milhões de sul-africanos que já recebem subsídios da segurança social, numa população de 52 milhões.

Um dos rostos mais críticos de Zuma é o arcebispo Desmond Tutu, Nobel da Paz, amigo de Mandela e figura-chave na luta contra o apartheid. Na semana passada, Tutu reafirmou numa conferência na Cidade do Cabo que não irá votar no ANC. E deixou um conselho aos eleitores: “Pensem quando estiverem a fazer a cruz e lembrem-se que isso decidirá a vossa qualidade de vida nos cinco anos seguintes”.

O ANC não tem oposição de peso. A DA (sigla inglesa de Aliança Democrática) continua a ser vista como um partido dos brancos. Apesar de não beneficiar da confiança da maioria negra, as sondagens atribuem-lhe 23% das intenções de voto. A DA pode ainda capitalizar a geração dos ‘nascidos livres’ (embora só um terço esteja recenseado ou 2,5% do eleitorado), que não tem memória de um país dividido pela segregação.

Há chavismo na África do Sul

Fundado em Agosto de 2013, o EFF (Combatentes da Liberdade Económica), mais radical, liderados por Julius Malema – expulso do ANC -, defende a expropriação das terras sem direito a indemnização (muitas na mão de brancos), a nacionalização de minas e bancos, à moda zimbabueana de Mugabe e venezuelana de Chávez.

Fã do chavismo, Malema não dispensa, como o falecido líder de Caracas, a boina vermelha. As sondagens, no entanto, estimam que apenas consiga 4% dos votos. O próprio não escapa a acusações de corrupção e evasão fiscal. E quando surge com acessórios de luxo ou se faz guiar para os comícios num Mercedes, o seu discurso em favor dos mais desfavorecidos torna-se insustentável.

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