Relação confirma tráfico de crianças angolanas

O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu manter em prisão preventiva três dos suspeitos de pertencerem a uma rede internacional de tráfico de menores, que tudo indica ser liderada por um general das forças armadas angolanas, Abraão Miguel, e por outro cidadão do mesmo país, Carlos Lobão, residente no Reino Unido.

Relação confirma tráfico de crianças angolanas

Os arguidos, detidos em Março, são ainda suspeitos dos crimes de auxílio à imigração ilegal e falsificação dos documentos que utilizavam para trazer crianças de Angola para Portugal – que servia de plataforma para, uma vez alcançada a naturalização dos menores, estes seguirem para a Europa. O Ministério Público (MP) defende que há fortes indícios, à semelhança de outros casos em investigação no país, de que os menores se destinariam à exploração sexual, adopção ou servidão doméstica – tese que se confirmará ou não com o andamento da investigação, uma vez que os arguidos remeteram-se ao silêncio.

Três irmãos raptados na fronteira com o Congo

O esquema para roubarem a infância às crianças estava montado nos carris da miséria. A investigação apurou que o general Miguel coloca os seus homens no terreno e é nas províncias mais massacradas pela fome, próximo da fronteira com o Congo, que encontram as suas presas: crianças que não sabem de pai nem mãe, ou de famílias desabrigadas de sorte, são o alvo ideal para o recrutamento, pois ninguém tentará saber do seu paradeiro se desaparecerem.

Foi o caso dos três irmãos que causaram uma brecha na rede com a detenção em flagrante de um dos seus peões: Edvania Miguel Titi, 13 anos, um irmão mais novo quatro anos, Abraão Ambrósio, e Maximiano, com pouco mais de um ano.

A rede pensava em todos os pormenores: os meninos viajariam para Portugal acompanhados por uma mãe falsa. Para isso, abordaram Nazaré Miguel, vendedora ambulante, que sem saber ler nem escrever foi tentada por promessas de melhor vida e aceitou prestar-se ao papel. Os homens do general convenceram a mulher de que fora um suposto amigo do seu pai – Euclides, outro elemento da rede, a residir em Paris e que tinha como missão desencantar documentação falsa – quem lhes pedira para a ajudar.

A mulher saiu com os meninos da província como se fossem seus filhos, rumo à capital de Angola. Em Luanda esperava-os o próprio general Miguel, que entrava com o dinheiro para deslocações e alojamento. Mestre em abrir portas, com passaportes forjados e vistos, o militar viajou para Portugal, acompanhando Nazaré. Era a primeira vez que a mulher saía do país, mas veio com passaporte com três registos de entradas e saídas de Portugal, o que leva o MP a supor que o documento já teria sido usado por outras mulheres para o mesmo fim.

Arranjar papéis portugueses

A 18 de Fevereiro deste ano, o grupo, sem saber o que o esperava, chegou a Lisboa e foi deixado num hotel da capital. Duas semanas depois, vindo do Reino Unido, após ter sido contactado pelo general, entra em cena Carlos Lobão, homem influente em Luanda e que recebe do cabecilha 500 euros para desamparar crianças.

O homem – que mais tarde, já com a justiça à perna, tentou passar por irmão de Nazaré, que dizia não ver há 15 anos e por isso a mandara vir para a Europa, o que a mulher negou – passou a tomar conta dos menores. Estes não saíram do hotel enquanto a rede tratava da documentação para os tornar cidadãos portugueses e então poderem seguir o seu incerto caminho para outros países europeus, onde seriam entregues aos interessados nos seus préstimos.

Entretanto, o general regressou a Luanda, levando consigo a documentação usada por Nazaré e pelas crianças, para dar continuação ao ciclo do tráfico de menores. A rede funcionava em pirâmide, fortemente hierarquizada: os membros desconhecem a função dos demais e o destino final dos menores, bem como o desenlace da sua angariação. Movem-se para não deixar rastos e as crianças vão mudando de mãos em locais públicos.

Os miúdos não tinham poiso certo e, a certa altura, foram para casa de outro elemento da rede que, por 150 euros, os ia 'formatando', para assumirem as suas novas identidades, até se obter a documentação pretendida junto das autoridades portuguesas. Para isso, a rede recorria a imigrantes africanos para quem Portugal não passou de uma falsa promessa. Desta vez, escolheram um angolano com três filhos de idades semelhantes às de Edvania Titi, Abraão Ambrósio e Maximiano, que por meia-dúzia de patacas lhes entregou os documentos e certidões de nascimento da prol.

Detidos em flagrante na conservatória

O destino dos irmãos é serem separados. O momento aproxima-se e o arguido Gualter Miranda vai ensinando Titi a assumir a nova identidade. Nunca se expõem ao perigo e é Jurelson, um cabo-verdiano desempregado, o escolhido para levar Titi e o irmão bebé a uma conservatória da Amadora para obterem os cartões de cidadão. O homem – que acabaria por confessar os factos, argumentando julgar tratar-se de uma querela entre progenitores e desconhecer o fim tecido para as crianças – também assumia uma falsa identidade como pai das crianças.

Foi no Registo Civil que se levantou a lebre. De imediato os funcionários chamaram o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que, com a experiência em casos semelhantes que vêm ocorrendo ultimamente no país com menores vindos de Angola e outros países africanos, desmontou o esquema. Jurelson foi apanhado em flagrante delito, enquanto os outros suspeitos vieram por arrasto, excepto o general Miguel, que se encontra em Angola.

No entanto, as notícias correram velozes e o militar não perdeu tempo. A partir de Luanda, ligou para o SEF, para tentar salvar os detidos: assumiu que acompanhara Nazaré e os miúdos a Lisboa, mas disse que era para fazerem compras. Ao tentar transformar gente sem posses em pessoas bafejadas pela riqueza, Abraão Miguel ainda se enterrou mais aos olhos dos investigadores.

Por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa teve mão pesada e, em acórdão de 17 de Junho, não deu provimento aos recursos de Carlos Lobão, Jurelson e Gualter Miranda que questionavam a prisão preventiva.

felicia.cabrita@sol.pt