Exemplo disso são os resultados de uma sondagem do Centro de Pesquisa Pew, um grupo de reflexão independente sediado em Washington que se debruça sobre questões sociais. Os resultados do inquérito feito entre 14 e 17 de Agosto revelam que 80% dos negros concordam que o caso da morte do adolescente levanta importantes questões raciais, contra 37% dos brancos inquiridos. A divisão também se nota no que diz respeito à confiança que os dois grupos depositam na investigação do caso: 52% dos brancos e 18% dos negros confiam bastante ou muito. Entre os que revelam pouca ou nenhuma confiança na investigação, 33% são brancos e 76% negros.
O caso apresenta versões contraditórias. É sabido apenas que Michael Brown e um amigo caminhavam na rua quando um polícia num carro-patrulha os mandou andar no passeio. Seguiu-se uma altercação entre o agente de 28 anos e o adolescente, que culminou num primeiro disparo no interior do veículo. O rapaz – que não trazia consigo armas – fugiu e o polícia começou a disparar.
A partir daqui, algumas testemunhas defendem que Brown parou, voltou-se para o agente, levantou os braços e disse: “Não tenho armas, não dispares”. Mas foi baleado várias vezes e fatalmente atingido na cabeça. Outros testemunhos prestados aos investigadores da Polícia local e aos agentes federais do FBI dão conta que o jovem não se entregou: pelo contrário, foi avançando em direcção ao agente, mesmo depois de baleado, até cair quando um tiro fatal o derrubou a cerca de dois metros de distância.
Dias depois, na sexta-feira 15, e já com Ferguson envolta em protestos, a Polícia divulgou imagens e um vídeo que indiciam que o adolescente teria roubado uma loja de conveniência pouco antes de ter sido interpelado pelo agente. Foi também tornada pública a identidade do polícia: Darren Wilson, entretanto afastado do cargo numa licença administrativa paga.
Três autópsias, seis tiros
Foram entretanto efectuadas três autópsias. Uma, a pedido da família, revelou que o adolescente tinha sido atingido seis vezes, com dois tiros a acertarem na cabeça. Também as autoridades locais examinaram o corpo, além de um médico militar que realizou o exame para a investigação do Departamento de Justiça, e que confirmou os seis tiros.
Os relatos de testemunhas e outras provas já começaram a ser apresentados pelo Ministério Público de Saint Louis a um júri de 12 cidadãos da comunidade. Serão eles a deliberar se há matéria para acusar o agente Darren Wilson – e, em caso afirmativo, de que crime(s). Mas o processo poderá prolongar-se até meados de Outubro, também por causa dos resultados de exames toxicológicos e forenses, explicou o procurador de Saint Louis Robert McCulloch, outro alvo de críticas. Foi levantada a hipótese do afastamento deste responsável no processo: o pai de McCulloch, polícia, morreu em serviço quando o actual procurador tinha 12 anos. O seu homicida era negro.
A morte de Michael Brown gerou uma onda de indignação e protestos nos dias que se seguiram – com manifestações pacíficas a derraparem para a violência, lançamento de cocktails molotov, garrafas, pedras, lojas vandalizadas. A resposta das autoridades passou por decretar o estado de emergência, impor um recolher obrigatório entre a meia-noite e as cinco horas da manhã, ripostar com gás lacrimogéneo e gás pimenta, e chamar a Guarda Nacional do estado do Missouri. Somam-se já dezenas de detenções e pelo menos duas pessoas foram feridas por disparos, que a Polícia garante não terem partido das suas armas. Desde a noite de terça-feira, os protestos violentos desceram de tom, mantendo-se as manifestações pacíficas.
Califórnia 1992 e Florida 2012
Apesar da violência em Ferguson, nada de semelhante com o cenário dantesco de Los Angeles em 1992, quando os polícias brancos acusados de espancar o afro-americano Rodney King (com imagens captadas em vídeo) foram absolvidos. Os motins de LA feriram mais de duas mil pessoas e mataram para cima de 50.
Duas décadas depois, outro caso mediático agitaria os EUA: o assassínio a tiro de Trayvon Martin, afro-americano de 17 anos, às mãos do vigilante de um bairro que achou o jovem suspeito e o interpelou. Martin estava a poucos metros da casa da madrasta em Sanford, na Florida. George Zimmerman seria mais tarde absolvido em tribunal das acusações de homicídio.
A mãe de Trayvon, Sybrina D. Fulton, escreveu uma carta aos pais de Michael Brown, publicada na revista Time, em que se solidariza com a dor deles e os avisa do processo mediático e judicial que se pode seguir: “Honrem o vosso filho e a vida dele, não as circunstâncias das suas supostas transgressões. Eu sempre disse que o Trayvon não era perfeito. Mas nunca ninguém me vai convencer de que o meu filho merecia ser perseguido e assassinado. Ninguém pode convencer-vos de que o Michael merecia ser executado”.
No Today, da estação NBC, os pais de Michael Brown pediram que o agente Darren Wilson seja julgado. “Creio que a justiça trará paz”, disse a mãe. O funeral do adolescente será dia 25.
Justiça negra, justiça branca
O procurador-geral Eric H.Holder, o primeiro negro a chefiar o Departamento de Justiça (e escolhido por Barack Obama, o primeiro Presidente negro dos EUA), foi a Ferguson, na quarta-feira, para se reunir com os agentes da Polícia e do FBI que investigam em paralelo a morte de Michael Brown.
A presença de Holder traz algum conforto à comunidade negra de Ferguson. O homem forte da justiça norte-americana é pioneiro nas investigações aos departamentos da Polícia no que diz respeito a violações dos direitos civis. Sob a sua alçada desde Fevereiro de 2009, o Departamento de Justiça já abriu 20 inquéritos nesse âmbito, mais do dobro do que nos cinco anos anteriores. Holder poderá também dar luz verde a uma investigação à Polícia de Ferguson.
O procurador-geral chegou a Ferguson um dia após nova morte violenta de um afro-americano – a alguns quilómetros daquela comunidade. Na terça-feira, Kajieme Powell, 23 anos, armado com uma faca, foi baleado por dois agentes da Polícia Metropolitana de Saint Louis. Testemunhas dizem que ele era conhecido na zona e sofreria de alguma incapacidade mental.
A Polícia, em comunicado, confirmou que os agentes abateram o jovem, que se comportava de forma “errática” e avançou para eles de faca em riste, não acatando as ordens de largar a arma. Os disparos terão sido feitos a cerca de um metro de distância. A desproporção de forças foi questionada e respondida com: cor da pele. “Acha que eles iriam matar um branco desta maneira? Podiam ter resolvido o assunto com um taser (arma de electrochoque) ou um cassetete. Podiam ter disparado para uma perna”, indignou-se ao Guardian um reformado.