Quando leu pela primeira vez o Diário de Anne Frank, tinha na altura oito anos, Filipa Martins inquietou-se por o livro não ter um final. Imaginativa desde criança, seguiu o mote do título e, em jeito de continuação, escreveu num diário pessoal uma proposta de fim para a história da jovem judia refugiada num sótão durante a ocupação nazi. “Um dia a minha mãe encontrou esse diário, leu o que escrevi e ficou assustada”, conta ao SOL a escritora, admitindo que o fim que inventou para Anne Frank era, de facto, “trágico” e motivo de preocupação materna.
Como resultado da criatividade prematura, Filipa foi levada a uma consulta de pedopsiquiatria, mas o destinatário da receita médica acabou por ser a progenitora. “O médico garantiu-lhe que não tinha uma filha depressiva e recomendou-lhe que lesse coisas como Oliver Twist e Tom Sawyer”.
Possíveis assombros infantis desmitificados, o papel permaneceu um confessionário das histórias que criava durante toda a adolescência e, na hora de escolher o curso universitário, Jornalismo impôs-se como a escolha óbvia. E foi precisamente na faculdade, a Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, que nasceu o seu primeiro romance: Elogio do Passeio Público, distinguido em 2004 com o Prémio Revelação pela Associação Portuguesa de Escritores.
“Soube da existência desse concurso três meses antes de o prazo terminar. Tinha de escrever um romance com, pelo menos, 150 páginas e como o prazo estava a terminar, fiz as contas e dava dez páginas por semana. Então decidi desafiar um professor: todas as sexta-feiras dava-lhe a produção da semana e ele devolvia-me, com apontamentos, as páginas da semana anterior. Se ganhasse o prémio, o livro tornava-se de leitura obrigatória na sua cadeira”, recorda, bem disposta, rematando: “E ganhei”. Elogio do Passeio Público acabou por ser editado quatro anos depois, seguido de Quanta Terra, em 2009.
Nesses longos interregnos entre publicações – que não a preocupam porque olha para “a escrita como uma corrida de fundo” -, Filipa dedicou-se à profissão que escolheu, trabalhando, entre outras, em redacções como a do jornal i, a coordenar a secção de Política. Mas como, nas palavras da própria, não consegue “dizer 'não' a um desafio”, em 2011, aceitou o convite do então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, para integrar a sua equipa no actual Governo.
A passagem pelo 'poder' foi, porém, curta. Pouco mais de um ano depois, um problema de saúde afasta Viegas do pelouro da Cultura e, com ele, a sua equipa pessoal. “Pela primeira vez vi-me sem uma ocupação a tempo inteiro e percebi que tinha aqui uma oportunidade para iniciar um novo romance”. Até porque, acrescenta, para conseguir escrever é urgente primeiro viver. “Preciso muito de viajar, cheirar, conhecer pessoas e histórias, abrir os sentidos todos e ganhar experiências para depois utilizar isso tudo como matéria-prima para a escrita. Em última instância, fazer outras coisas para pagar contas porque a maior riqueza de um escritor é comprar tempo”.
Dedicada então em exclusivo à escrita durante quatro meses, com obrigações auto-impostas de horários fixos e rotinas semelhantes às de um trabalho convencional, partiu para a escrita de Mustang Branco (ed. Quetzal) com três premissas: a de escrever na primeira pessoa – ao contrário dos livros anteriores, em que optou por ter um narrador omnipresente -; no feminino – para contrariar “o estereótipo de que uma voz feminina é obrigatoriamente sentimental e não consegue olhar o mundo sem ser por detrás de tules e flores” -; e criar uma mulher que pelas suas imperfeições e idiossincrasias pudesse levar a algum tipo de identificação.
“É fácil identificarmo-nos com as qualidades das pessoas, mas muito mais difícil com os seus defeitos. Esta mulher é feita em camadas e, à medida que a história avança, conseguimos perceber que tem mais complexidade do que aquilo que mostra num primeiro impacto”.
Habituada a escrever sempre com uma pilha de livros na secretária, há em Mustang Branco referências literárias que foi acumulando ao longo dos anos de leitura voraz na juventude. Jorge Luis Borges, e a sua ideia de que o presente não existe, é um deles. “Esta mulher é uma espécie de aforismo que me levou a escrever o livro: a ideia de que raramente nos encontramos no dia a que chamamos o dia de hoje e de que vivemos presos por alfinetes de memórias que condicionam a nossa acção e, mas muitas vezes, a nossa inacção”.
Foto: Raquel Wise/SOL