Legionella: ‘Devemos ter confiança nas pessoas que estão a tratar do caso’

António Veríssimo, do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, estuda a Legionella há mais de 20 anos e garante, ao SOL, que nunca tinha visto um surto desta dimensão. Esclarece algumas das características desta bactéria, cuja origem – e nome – remontam a uma reunião de legionários num…

A idade dos pacientes anda entre os 30 e os 90 anos. As crianças não são infectadas?

Esse é um aspecto intrigante da doença. Mas não podemos Afirmar assim, com certeza. Podemos dizer que geralmente as crianças não são afectadas. Há casos de legioneloses em crianças. Por que a taxa de incidência em crianças é mais baixa? Não há explicação para isso. Há um conjunto de circunstâncias que pode propiciar que os adultos sejam mais expostos, embora há casos em surtos destes em que as crianças também são afectadas.

Isso foi verificado noutros casos, então.

Sim. Do meu ponto de vista, as autoridades têm feito um trabalho excelente, inclusivamente com esta nova centralização da informação. De uma maneira geral, também os órgãos de comunicação têm correspondido. Há apenas um detalhe que é capaz de escapar aqui: o número de Legionellas. Dizem, e com toda a razão, que existem Legionellas em todo o meio aquático, só em água salgada é que provavelmente não haverá. Podemos interrogar-nos, por isso, por que não estamos todos doentes. O que acontece é que podem ser criadas condições nos nossos sistemas de distribuição de água, nas nossas aparelhagens onde passa a água, que propiciem um aumento brutal da bactéria. 

O caso original deu-se em Filadélfia…

… Em 1976 e que depois só foi explicado em 1977. Foi o caso que deu a designação à doença, os tais legionários americanos que morreram num hotel em Filadélfia. Geralmente, nalguns casos não é necessário as pessoas estarem dentro dos edifícios. É que além das tais condições que é necessário criar para aumentar o número de bactérias, é necessário também que se criem condições para as dispersar. O que acontece é o seguinte: algumas dessas torres de arrefecimento estão localizadas ou no topo ou no fundo dos edifícios e os aerossóis podem ser transportados para baixo. Um indivíduo que passe na rua está a respirar ar contaminado, enquanto isso não acontece às pessoas que estão dentro do edifício. A não ser que haja problemas de engenharia mais severos. 

Por exemplo?

Há um caso típico na sede da BBC em Londres, há uns anos, em que as tomadas de ar do edifício estavam orientadas no sentido das próprias torres de refrigeração. Os edifícios que têm condicionamento do ar geralmente têm ar forçado também. As pessoas não abrem as janelas. O ar é renovado é também forçado para dentro, e é expelido. Portanto, essas entradas de ar, geralmente, estão no topo dos edifícios. O que aconteceu foi um problema de engenharia amplamente estudado, é que o ar que estava a entrar estava a ser directamente contaminado pela própria torre de refrigeração. E aí, de facto, nesse surto muito conhecido, 80 funcionários da BBC foram hospitalizados de um dia para o outro. Houve também casos de falecimentos. 

A produção de aerossóis pode ser feita para o exterior.

Exactamente. De resto, é o que acontece nestes surtos grandes. 

Se tiver sido das fábricas, no caso do concelho de Vila Franca de Xira, terá sido assim a propagação?

Não conheço bem a região, lamento não poder ajudar nesse aspecto. Mas seguramente há fábricas, centros comerciais, etc., que têm esses sistemas, embora a origem possa ser outra. De facto quase todos os grandes surtos, sobretudo na Europa – na Austrália é um pouco diferente –, são provocados por sistemas destes. 

Mas há um caso, neste surto, de um paciente contaminado dentro de casa. 

Podemos imaginar algumas situações, em mais de 200 casos, em que cada caso é um caso e fazer a história de todos eles. Deve haver, neste momento, pessoas muito atarefadas a dedicarem-se a estas questões. E pode ser – e as autoridades podem estar preocupadas com isso –, embora sejam casos raríssimos, que seja a própria rede que está infectada. Mas neste caso não faz grande sentido que assim seja, porque estaríamos nesta altura com muito mais casos. A Legionella pode ser ocasionalmente detectada na rede, como disse é normal que ela exista em água, embora na rede se trate de água tratada – a ideia, precisamente, é não deixar que estas bactérias e outras, que existem naturalmente nas redes de distribuição, aumentem de número. A inviabilização de todas as bactérias nunca acontece. Enquanto consumidores, o que exigimos que seja feito nas nossas redes de distribuição tem a ver com a manutenção de limiares razoáveis deste e doutros tipos de bactérias. 

Que cuidados devemos ter mesmo dentro de casa, no dia-a-dia? Devemos ter cuidado até com os ferros de engomar?

Consigo perceber que as autoridades se preocupem com essas recomendações que ao fim e ao cabo pressupõem que a bactéria estará no sistema de distribuição geral. O facto de dizerem para não tomar duche em casa, por causa do chuveiro, por exemplo, pressupõe que a rede está contaminada. E no caso do ferro de engomar, vamos buscar a água à torneira… Mas, como disse, esse pressuposto é muito raro. E penso que é altamente improvável, uma vez que se isso acontecesse nesta altura teríamos uma quantidade muito superior de casos. Mesmo que fosse só um depósito da rede que estivesse contaminado, haveria mais gente a ser afectada ao mesmo tempo. Parece pouco provável, embora me pareça razoável que as autoridades tenham em consideração essa possibilidade também. As pessoas devem ter cuidado com chuveiros, com a lavagem de carros, em que se respira muita água. 

Daria então os mesmos conselhos das autoridades de saúde pública?

Nalguns casos, em casa, pode haver outra fonte que pode propiciar um aumento da bactéria se tivermos um depósito. Mas normalmente os nossos depósitos têm pouco volume e o que temos é um cilindro de aquecimento. E essa situação não se coloca, sequer, a quem usa esquentador. De facto, as autoridades têm dito para colocar o cilindro de aquecimento a uma temperatura superior a 60, 65ºC. É uma boa medida, outra vez nessa perspectiva de ela poder estar a ser distribuída já em números razoáveis pelo nosso próprio sistema de distribuição da água, e que haja qualquer coisa em nossa casa que faça aumentar o número. E a água estagnada em temperatura ligeiramente alta é um desses factores que faz aumentar muito o número. Mas acima de 65º não se verifica, embora aí tenhamos um outro problema, é que podermos queimar-nos. 

Entretanto as pessoas têm corrido a comprar água engarrafada…

Há muita gente preocupada, mas acho que temos de ter confiança nas pessoas que estão a tratar do caso. E temos de ter confiança no facto de que algumas fontes disseminadoras mais prováveis já terão sido inactivadas nesta altura. O número de casos provavelmente irá baixar, não já, mas irá baixar.

Os surtos são sempre assim?

Há estudos feitos com surtos de mais de 600 pessoas. Trabalho com a bactéria há mais de 20 anos e este é de longe o maior. Os mais frequentes são casos isolados. Outra questão importante é o tipo de bactéria. Existem cerca de 50, mas nem todas são iguais, como nem todos os cães são iguais entre si. Mas algumas terão maior virulência do que outras e os hospedeiros também terão susceptibilidades diferentes – os mais atingidos são homens (não se sabe porquê), fumadores, pessoas com doenças respiratórias ou imunodeprimidas (por medicação, por exemplo). Em relação aos últimos, nos hospitais com unidades de transplantes há muito cuidado com esta questão.

E há tratamento.

E é preciso dizer que há cura. Há antibióticos perfeitamente identificados para estes casos. 

ricardo.nabais@sol.pt