Katia Guerreiro: ‘Já não quero controlar tudo’

Não passou os últimos anos sem cantar, mas há seis que não lançava um álbum de inéditos. Até ao Fim marca o regresso de Katia Guerreiro aos discos, numa altura em que sente já não ter nada a provar. 

Não lançava um disco de inéditos há seis anos. Porquê a espera? 

A vontade de fazer existia, mas foram acontecendo coisas pelo meio. Quis cantar coisas que não eram minhas, comemorar os dez anos de carreira, fazer o Olympia, que foi gravado ao vivo e, por razões burocráticas, demorou tempo a sair. Foi-se adiando o novo disco de inéditos sem uma intenção muito reflectida, mas quando chegou a altura de pôr mãos à obra foi muito fácil porque já tinha uma série de coisas postas de parte.

A dificuldade foi então ao contrário: com tanta coisa, o que cantar?

Comecei a pré-produção do disco com vinte e tal temas e, antes de entrar em estúdio, disse ao meu produtor, o Tiago Bettencourt: 'Agora a escolha é tua'. 

Não a imaginava a prescindir do controlo total de uma obra sua… 

A experiência deu-me essa maturidade. Já não quero controlar tudo. O que tenho de fazer é cantar, e cantar bem. Percebi que tinha de me desligar de tanta responsabilidade e, além de ter sido o Tiago a escolher que temas gravar, decidi meter-me nas mãos de uma agência, a UAU, e delegar. Ao longo dos anos tive agentes, mas as coisas tinham que passar sempre por mim. Agora não quero. Acho que aprendi isto com o nascimento da minha filha. Nada é nosso, não somos donos de uma verdade absoluta. Percebi que precisava dessa leveza e que podia encontrar isso delegando decisões em quem confio plenamente. 

O Tiago Bettencourt vem da pop. Não temeu que a tirasse do fado? 

Quando decidi que queria um produtor musical, não pensei em mais ninguém. Não tem de haver preconceitos ou complexos sobre quem entra no universo fadista. Reconheço no Tiago, nas suas canções, uma capacidade de dizer coisas que fazem sentido no fado. Por isso não me surpreenderia nada que o Tiago se cruzasse um dia com o fado. Olha, fui eu que o fiz cruzar-se e resultou.

Ainda assim, como foi unir dois universos distintos?

Foi muito simples trabalhar com o Tiago porque ele tem uma sensibilidade extrema, de alguém que tem a simplicidade dentro de si. Dizia-me muitas vezes: 'Volta ao teu começo. Esquece os palcos, canta como se fosse a primeira vez. Procura a maior das simplicidades nas poesias e nas tuas emoções'. Havia uma coisa que me fazia confusão e, exactamente por isso, nunca tinha produtor: temia que viesse alguém com vícios dentro das escolhas do fado, com vontade de inovar brutalmente. A inovação aqui é a simplicidade e a manutenção de características tradicionais. O simples é o mais difícil de alcançar, mas é o mais bonito que se pode oferecer. 

Já não tem nada a provar?

Exactamente. Essa foi a frase que o Pedro de Castro (guitarra portuguesa) me disse num ensaio. Eu só perguntava 'então e os fados tradicionais?', ao que me respondeu: 'Katia, não tens nada a provar a ninguém. Isto é o teu oitavo disco, faz o que te vai na alma'. Foi o que fiz. Estive muito bem apoiada e aconselhada, tive músicos fora de série, como o professor Joel Pina e o Pedro Jóia, que vieram dar um brilho ainda maior ao disco e me ajudaram a levá-lo para outra dimensão. 

Escolheu o poema 'Até ao Fim', de Vasco Graça Moura, para titular o álbum. Porquê? 

Este 'Até ao Fim' é uma declaração de amor eterno, um compromisso de lealdade. Apercebi-me disso na Basílica da Estrela quando cantei no funeral do Vasco. O Vasco tinha um desgosto porque nunca me tinha ouvido cantar poemas dele e, para aí há oito anos, mandou-me uma série de coisas. Na altura estava toda a gente a cantá-lo, não quis ir na onda. Entretanto passou-se este tempo todo e decidi que ia acontecer neste disco. Entreguei 'Até ao Fim' ao Tiago para musicar, ficou deslumbrante, e liguei ao Vasco para combinarmos ir ter com ele e mostrar-lhe. Passados uns dias o Vasco faleceu e não lhe consegui mostrar. Mas fui para a Basílica cantar-lhe. Quando acabei, o que me veio à mente foi que tenho um compromisso com as pessoas para sempre. Muita gente acha que vou deixar de cantar porque vou para a Medicina. Não. Estou aqui até ao fim. 

No disco há diferentes energias. Foi propositado? 

O fado muda em função das pessoas envolvidas. Não canto da mesma maneira se estiver acompanhada pelo Pedro de Castro ou o Luís Guerreiro. São coisas diferentes, apesar de termos todos uma empatia gigante uns com os outros. Por isso não precisei de trazer elementos externos ao fado, só tive de alargar o leque de músicos com quem trabalho. Isso traz logo outras sonoridades, outras abordagens. 

Colabora pela primeira vez com Samuel Úria e José Fialho Gouveia, autores de um poema cada. Como surgiram estas parcerias?

Queria muito cantar o fado versículo, mas queria uma letra estrondosa. Há uma muito bonita, mas já muita gente a cantou, e bem, e eu não tinha nada a acrescentar. Foi aí que o Tiago sugeriu o Samuel e eu confiei cegamente. Não demorou muito até que me chegasse esta letra que me deixou completamente caída redonda no chão. Só de ler o poema lavei-me em lágrimas e depois, quando o comecei a cantar, foi uma lavagem da alma. É a letra mais bonita que conheço para o fado versículo. É uma vertigem ler aquilo. Já o José Fialho, temos um amor literário há anos. Ele escreve poemas, manda-me e eu passo a vida a ler coisas dele. Adoro o que escreve e, definitivamente, tinha de o cantar. 

O disco fecha com uma canção de embalar, para a sua filha. Tinha de ser?

Não tinha de ser, mas desde que a Mafalda nasceu que queria escrever qualquer coisa para ela, mas demorei muito tempo a conseguir. Um dia fui a um concerto do Rui Veloso e ele resgatou o tema 'Bem-vinda Sejas Maria', que escreveu para a filha. Naquele momento percebi o que podia fazer. A caminho de casa peguei no telemóvel e comecei a escrever e no dia seguinte de manhã terminei a música em 20 minutos. É um tema extra, uma canção de embalar. Daqui a 20 anos quero ver qual será a reacção dela ao perceber que a mãe lhe fez uma coisa, ofereceu-lhe e mostrou ao mundo. 

alexandra.ho@sol.pt