A igreja faz-se com as promessas dos ricos e as contribuições dos pobres’

O caso ocorreu no mês passado, em Mangualde, chocando a população local e chegando às primeiras páginas dos jornais nacionais. O pároco Gabriel Ulumdo, da pequena localidade de Freixiosa, no distrito de Viseu, recusou-se a celebrar o funeral de um homem de 68 anos, por este alegadamente ter uma dívida de 375 euros, relativa à…

A igreja faz-se com as promessas dos ricos e as contribuições dos pobres’

O SOL recolheu testemunhos de vários sacerdotes, entre os quais o bispo de Viseu, unânimes no repúdio pelo sucedido e na recusa da obrigatoriedade da contribuição, que a lei canónica não prevê. Mas a questão de fundo por trás deste episódio mantém-se: têm os católicos a obrigação de suportar o custo de vida do padre? E de que forma? A regra geral ainda é a formulada por S. Paulo: “Quem serve o altar vive do altar”. A partir daí, há muitas variantes.

Nos meios urbanos, a côngrua – uma contribuição que tem como padrão um dia de trabalho por ano e que deve ser paga no final do mesmo – está em desuso, mas, no interior do país, em paróquias onde os católicos ainda se relacionam pessoalmente com o padre, em comunidade, a tradição resiste. E, numa breve pesquisa, encontrámos mais diferendos entre a população e o pároco. Em 2007, um padre de Barcelos anunciou que iria deixar de dar os sacramentos e privar o acesso a todos os serviços, nas suas quatro paróquias, a quem não estivesse inscrito e/ou não tivesse pago a côngrua. Aliás, estava até prevista uma multa de 50 euros por cada ano em falta. Em 2011, numa história contada pela agência Lusa e que terá envolvido também um decote pronunciado, um padre de Valpaços alegou a falta de pagamento da côngrua para recusar a celebração de uma missa de sexto mês de um falecido.

Ao SOL, o bispo de Viseu, D. Ilídio Pinto Leandro, apelidou a situação ocorrida em Freixiosa de “lamentável”. “Não deve acontecer, nenhum padre deve deixar um funeral por fazer se a família o quer”, afirmou, sublinhando que Gabriel Ulumdo é angolano, recém-chegado a Portugal e ter-se-á sentido “inibido” face à “orientação do conselho económico para não fazer” o funeral. “Ele foi incapaz de ultrapassar a situação e veio falar connosco logo na segunda-feira seguinte. Não devemos dar pena de exclusão a qualquer pessoa que tem uma falha. Há que remediar o mal que fez, para que não se volte a repetir”, adiantou.

Dar o que se pode

Estará a côngrua – sustentada no quinto preceito católico, ou seja, “contribuir para as necessidades materiais da Igreja, segundo as possibilidades” – condenada a desaparecer? Para o padre Adélio Abreu, director adjunto da Faculdade de Teologia da Universidade Católica do Porto e do Centro de Estudo de História Religiosa, o que está em causa é o nome, não a prática. “É através dos fiéis que os padres têm o seu sustento, salvo algumas excepções, em que se dedicam ao ensino, por exemplo”, explica. O Concílio Vaticano II, concluído em 1965, impôs mudanças importantes: os párocos tiveram de constituir os ditos conselhos económicos, envolvendo dessa forma os fiéis, ou leigos, na vida da Igreja. E estes passaram a organizar-se de forma mais ou menos livre para assegurar que o padre tem um sustento congruente. A palavra côngrua virá daí. “O próprio adjectivo tornou-se substantivo”, frisa Adélio Abreu.

A congruência aplica-se igualmente aos fiéis, ou seja, cada qual dá o que pode. “Em todos os lugares, em todas as dioceses, são os cristãos que dão o que acham justo e voluntário. Não os podemos obrigar, ir a cada casa e pedir”, esclarece o bispo de Viseu, que fala numa certa “criatividade” de cada conselho económico para encontrar as melhores soluções. Nas localidades mais pequenas, esta recolha porta a porta até pode ainda subsistir, mas tal é impensável nas cidades. Nesse caso, as paróquias têm outros recursos para abastecer o fundo do qual são pagas as despesas, dispensando a côngrua: há mais 'clientes' a oferecer donativos, verbas relevantes resultantes das taxas pelos sacramentos (onde há côngrua, as famílias cumpridoras estão isentas) e até os ofertórios e as intenções de missa (que devem servir primordialmente para outras despesas da paróquia e da diocese) são mais generosos.

O cónego Rui Osório – que foi jornalista no Jornal de Notícias entre 1977 e 2005 -, assumiu há nove anos a paróquia da Foz do Douro, no Porto, e explica por que a côngrua “não funciona” na cidade: para começar, não há meios para fazer um recenseamento dos católicos praticantes; em segundo lugar, muitos residentes deslocam-se a outras igrejas; e, por fim, a crise bateu à porta. “Quando cheguei ainda havia um punhado de cobradores de porta em porta, mas cansaram-se porque as pessoas diziam sempre 'calha mal' ou 'ainda agora vim da farmácia aviar umas receitas'“.

Por isso, o fundo paroquial – que deve sustentar o padre e as despesas de culto, incluindo duas funcionárias que mantêm as portas abertas e a igreja cuidada – é alimentado por contribuições “modestas” e “voluntárias”. Juntam-se-lhe umas “migalhinhas”, que incluem as taxas por casamentos,  baptizados e funerais, serviços bastante procurados numa zona privilegiada da cidade. “Não temos uma instituição de fiscalidade, cobrança e coimas”, reforça Rui Osório, de 74 anos, que garante ainda “não ter memória” de uma situação de recusa de um sacramento na diocese. E quanto ganha um padre no Porto? “Em média 800 euros, dos quais ainda faz descontos, mais alcavalas, se for o caso”. O cónego brinca: “A minha mulher não se queixa nem os meus filhos me pedem pão”.

A generosidade dos pobres

Bem mais jovem do que Rui Osório é o pároco de Rio de Moinhos, uma freguesia do concelho de Penafiel com menos de 3.000 habitantes, que visitámos no Domingo de Ramos, para conhecer esta realidade num meio rural. Encontrámos uma igreja pequena, que não chegou para todos os fiéis, faixas etárias diversas (incluindo um número significativo de crianças, que aqui ainda parecem vir à missa com as suas melhores roupas) e envelopes para a renúncia quaresmal, que incluíam uma citação do Papa Francisco: “Desconfio da esmola que não custa nem dói”.

Porém, esta paróquia parece depender menos de ofertórios ou de receitas pontuais. Uma grande parte da comunidade paga a côngrua – aqui chamam-lhe direitos paroquiais – e o padre Filipe Silva, de apenas 31 anos, diz sem sequer notar uma grande oscilação nas ofertas desde que a palavra crise se tornou a mais popular nas conversas do dia-a-dia. “Há uma contribuição dentro das possibilidades e consciência de cada um, numa média, por ano, de 15 ou 20 euros por família. Por vezes fico surpreendido com famílias em que o homem está desempregado e a mulher é doméstica… Geralmente, os pobres são mais generosos do que os que têm mais. A Igreja faz-se com as promessas dos ricos e as contribuições dos pobres”, observa.

Em Rio de Moinhos, há vários grupos em torno dos quais gira a vida da paróquia. José Rodrigues, de 46 anos, natural e residente na vila, faz parte do grupo das leituras e defende que “a obrigação de um cristão é colaborar com as despesas da paróquia”, até porque agora os párocos “são colectados” e o seu rendimento é transparente, pois as contas são “apresentadas semestralmente”. A seu lado, Manuel Oliveira (62 anos, motorista reformado) especifica que a sua contribuição ronda os 60 a 80 euros e que é muitas vezes questionado sobre o valor correcto a dar: “Não mando no dinheiro dos outros. Algumas pessoas não pagam mas nada fica por fazer. Quem paga tem direito a todos os serviços, os outros nem tanto, mas o padre faz e depois pode pedir alguma contribuição”.

As pressões dos conselhos

A gestão das expectativas e pressões dos leigos nos conselhos económicos é uma das questões mais delicadas que cada sacerdote tem de gerir. “Geralmente acham que o padre deve ser implacável para quem não contribuiu, têm uma noção de justiça de olho por olho, dente por dente. Fazemos perceber que igreja é mais do que isso”, admite Filipe Silva, que é também vigário (uma espécie de coordenador) das paróquias de Castelo de Paiva e Penafiel. Nesta cidade, já se torna mais complicado implementar o sistema dos direitos, apesar de um esforço nesse sentido, valendo então as taxas pelos sacramentos estipuladas pelo bispo do Porto: 25 euros para baptizados e celebração de casamentos, 30 euros por um funeral. 

Para Filipe Silva – que estima que a paróquia de Rio de Moinhos necessite de 2.000 euros mensais para despesas – é um “absurdo completo” não celebrar um sacramento por falta de pagamento: “Não sou polícia nem  ando atrás das pessoas. A contribuição é livre. Estamos para servir, não somos comerciantes de religião”. Nas paredes da sua igreja são visíveis várias datas remotas (1737, 1852 ou 1874), que atestam a sua antiguidade e fazem relembrar tempos complicados que Adélio Abreu, doutorado em História Eclesiástica, recorda: o liberalismo, no século XIX, e a República, no século XX, fizeram os padres portugueses perder primeiro os dízimos, depois os rendimentos dos seus terrenos, os passais. Essas dificuldades estariam na génese da côngrua, cujo futuro a Deus pertencerá. Manter-se-á a regra de S. Paulo?