A conversa com o coordenador durou pouco e empancou logo na questão do tratamento. A simples referência ao tal professor acabou logo ali. Porque, primeiro que tudo, e segundo o coordenador, ele, o professor, era muito mais do que só professor. Era professor doutor, e que ele próprio, o coordenador, era também professor doutor e mais uma série de títulos de que já não me consigo recordar.
Claro que ninguém teve coragem para interromper aquela ‘lição’. E até não nos convinha esclarecer que não era uma questão de desrespeito ou indelicadeza da nossa parte – mas, apesar dos muitos títulos, qualquer um deles era antes de tudo nosso professor, no sentido em que nos transmitia conhecimento.
Depois disto, cada um de nós arranjou-se como pôde com as frequências.
Antes deste episódio, numa loja de roupa à qual ia mais frequentemente do que gostaria de admitir, tratei a empregada por ‘tu’. Não o fiz por desrespeito. Éramos mais ou menos da mesma idade e víamo-nos regularmente. A resposta veio sob a forma de um olhar fulminante. A partir daí, deixei-me de modernices e decidi que, nestas coisas, mais vale cerimónia a mais do que a menos.
Aqui na vila, a maioria das pessoas, em especial as mais velhas, trata-se por ‘tu’. Sendo uma vila pequena, onde todos se conhecem desde crianças – quer sejam comerciantes e fregueses ou vizinhos e conhecidos – o tratamento na segunda pessoa do singular é o mais comum.
Só percebi isso há pouco tempo, quando apanhei a menina da lavandaria, muito mais nova do que eu, a tratar-me por ‘tu’. E eu tratava-a por ‘senhora’. Assim, deixei cair a cerimónia e passei a tratá-la do mesmo modo. Mas ainda me faz confusão. Todas as vezes que lá vou tenho de me autocorrigir…
A D. Alda da mercearia trata-me por ‘amor’. «Tu, amor». Avia-me rapidamente, porque sabe que ando sempre com pressa. Fala com graça e cordialidade, enquanto ouve outra freguesa. Sabe que eu não preciso nem gosto de sacos de plástico. E deixa-me ir atrás do balcão para facilitar o avio.
A D. Graciete da praça trata-me por ‘menina’. «Tu, menina». Aliás, é capaz de me chamar ‘menina’ dez vezes em cinco minutos. Deixa-me escolher a fruta à vontade. Fala alto e pergunta-me pela minha cadela molenguinha.
No talho tratam-me por ‘senhora’. Mas já as senhoras do Centro de Saúde tratam as pessoas que lá vão como lhes apetece e dependendo de como lhes esteja a correr o dia. Mas raramente é ‘senhor’ ou ‘senhora dona’. Pode ser ‘você’ ou até ‘ó filha’. E é praticamente inútil recordar-lhes o bom princípio do tratamento republicano, sob pena de deixar as senhoras desorientadas, em alvoroço, e atrasar ainda mais o tempo de espera.
Chega a ser confuso. Se em Lisboa não havia forma de errar ao tratarmos toda a gente por ‘senhor’ ou ‘senhora’, aqui tanta cerimónia é muitas vezes interpretada como snobismo ou, mais simplesmente, como manias lá de Lisboa. E isso nem sempre é bom.
Na nova mercearia da vila, a Cátia, a mais nova comerciante, quase me tratou por ‘senhora’. Somos mais ou menos da mesma idade e com muito em comum. Mas somos ambas de Lisboa. E nenhuma de nós se lembrou de parar a tempo a conversa bem encadeada, apesar de só nos conhecermos há cinco minutos, para esclarecer esse assunto. Talvez para a próxima.