‘O elevador acabou com a distinção de classes’

Como são as casas das pessoas comuns? Como evoluíram desde o período pombalino até ao prédio moderno? Em Casas com Escritos a catedrática Margarida Acciaiuoli espreita pelo buraco da fechadura e conta-nos a história da habitação em Lisboa.

A casa foi um tema pelo qual sempre se interessou e até já dedicou uma aula inteira à porta de entrada. «Comecei por perguntar: qual é o elemento fundamental numa casa, a porta ou a janela? Toda a gente achava que era a janela. E eu disse: ‘Ai, é? E os milhares de anos que o homem viveu nas grutas?’».

Margarida Acciaiuoli, catedrática do Departamento de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, acaba agora de publicar Casas com Escritos – Uma História da Habitação em Lisboa (Bizâncio). O projeto foi encarado com desconfiança por alguns dos seus pares, que consideram o assunto banal. Mas a catedrática, que no seu livro fala desde o terramoto de 1755 ao piquenique do Continente, esforçou-se por provar o contrário.

Imagine que estamos em 1916. Ao entrarmos numa casa da classe média, qual é a maior diferença que encontramos face às nossas casas atuais?

A maior diferença é a importância que davam à sala de visitas. Defendo que essa atenção vem do facto de as portuguesas estarem cansadas de viver fechadas em casa, por isso dedicam a sua atenção a uma sala que fica perto da porta de saída, uma sala que fazia a transição para a rua.

Se recuarmos outros cem anos, até 1816, ainda é essa a principal característica de uma casa?

Não. É a indiferenciação dos lugares. E nas casas da Baixa, tirando a rua do Ouro e da Prata, não há corredores. A circulação faz-se de um quarto para outro, o que aliás não acontece só na casa comum. No palácio de Queluz as divisões também comunicam entre si. E mesmo quando o corredor começa a ser introduzido, as portas mantêm-se, o que é muito interessante.

Como era a planta dessas casas?

Em retângulo. Uma parte dava para a rua e outra parte dava para o saguão. Junto ao saguão ficava a cozinha, que tinha várias funções. Havia uma pia enorme onde se deitavam os resíduos da comida e onde estava a retrete.

Há alguma característica específica da casa portuguesa?

Se formos à Graça ou à zona do Castelo vemos palácios ao lado de casas populares. Consultei memórias em que as pessoas diziam que viam os filhos dos nobres a brincar na rua com os filhos dos populares. Essa era uma tradição fantástica que se está a perder.

Em Paris, em 1955, só 45% das casas tinham instalações sanitárias. Como foi em Portugal?

O século XIX traz preocupações concretas sobre a saúde pública e a higiene, mas só nos finais dos anos 1920 aparece legislação relativa às casas de banho. Visitei alguns prédios na zona da Almirante Réis, por exemplo, que têm uma varanda fechada e é nessa varanda que está a sanita.

Falou na indiferenciação das divisões na casa pombalina. Mas depois assistimos ao aparecimento de divisões com funções muito específicas, como o quarto de costura.

Sim, no final do século XIX há uma grande especificidade nas salas. O desaparecimento do quarto de costura tem uma explicação. No espaço entre as duas guerras a cidade expande-se e, ao expandir-se, os terrenos junto às grandes artérias sobem de preço e os materiais também ficam mais caros. Conclusão: as construções vêem reduzida a sua área e há funções que deixam de ter um lugar específico. Mas, estranhamente, também aparece uma divisão nova.

Qual?

O escritório. Veja bem: o homem, que normalmente trabalha fora de casa, tem uma divisão só para ele, e a mulher, que muitas vezes está em casa, deixa de ter o seu canto. Não acha isso uma coisa sem pés nem cabeça? E atenção que eu não sou feminista.

A condição da mulher reflete-se muito na disposição das casas?

Da mulher e não só. A Ilse Losa, uma escritora alemã que vem para aqui por causa do nazismo, escreve um artigo para uma revista de arquitetura dizendo que não percebe porque os arquitetos continuam a fazer os parapeitos das janelas tão altos que as crianças não chegam lá. A casa fala sobre a condição da mulher, mas também do homem, da criança e da criada.

E da relação de forças entre todos.

Sim. Era bom que se fizesse a história das criadas. Nos palácios, os estrangeiros ficam admirados, que eles [os patrões] sabem os nomes e tratam os criados por senhor. Já a burguesia dos palacetes considera as criadas invisíveis. Faziam parte das casas como os móveis.

Há um tema que não foca no seu livro, os animais domésticos. Trata-se de um fenómeno recente ou já vem de trás?

Não é recente. Em finais dos anos 50 fui a casa de um jovem, na zona dos Anjos, que criava galinhas na banheira.

Como eram as casas iluminadas e aquecidas antes da eletricidade?

Na iluminação, antes da eletricidade há o azeite e o gás. Quanto aos aquecimentos, não são tão antigos quanto se possa supor. Os portugueses têm uma tradição de suportar o frio. As casas pombalinas não têm lareira. É uma coisa que devia ser estudada. A lareira que existia era na cozinha.

Refere que na Roma dos Césares havia prédios de cinco e seis andares, mas foram os EUA a recuperar a construção em altura. Em 1900 o projeto de um edifício de dez andares não é aprovado.

Sempre evitámos a construção em altura. Viaja-se por Lisboa e os edifícios nunca ultrapassam os seis, sete andares.

Qual é o nosso primeiro arranha-céus?

É um projeto de 1943 do Cassiano Branco, que a Câmara também não aprova. Diz que os arranha-céus não têm nada a ver com a nossa tradição.

Para construir em altura são precisos elevadores.

Lisboa em 1911 tinha quatro elevadores. O elevador vem revolucionar a habitação. Os prédios pombalinos foram pensados para alojar rapidamente a população. Têm uma loja no rés-do-chão e mais três andares. Depois acrescenta-se um quarto. O que acontece? Quem tem dinheiro, fica com o primeiro andar, para não ter de subir. O remediado fica com o segundo. Aquele que tem ainda menos fica com o terceiro e aquele que não tem dinheiro quase nenhum fica com o último. Ora, o elevador acaba com a distinção das classes e até inverte a situação: os andares mais caros passam a ser os mais altos, porque têm melhor vista. Acho isso uma coisa fantástica.

Um dos quatro elevadores que mencionou era no prédio que ganhou o prémio Valmor em 1903.

E havia dois na Avenida da Liberdade, um deles num edifício que agora tem lá um grande costureiro. Estranhamente, quem tinha elevador eram os palacetes, sabe para quê? Para levar a comida da cozinha, na cave, para a sala de jantar, no rés-do-chão.

Quando começa a construir-se em altura em Lisboa?

Em 1955 Salazar aprova a chamada lei da propriedade horizontal. Até aí, construía-se um prédio e o prédio tinha um dono. Com a nova legislação, as pessoas que constroem os prédios podem vender por frações e isso altera tudo. Lisboa, que até aí era uma cidade de inquilinos, torna-se uma cidade de pequenos proprietários. As pessoas levaram séculos a querer ter uma casa. E a lei da propriedade horizontal deu-lhes isso.

Essa época traz outras novidades?

Sim, em finais dos anos 50 entram em casa dois aparelhos que mudam a vida das pessoas: a televisão e o frigorífico. E depois aparece a máquina de lavar louça.

O que faz com que a criada possa…

… ser dispensada. Mas nos anos 70 ainda se fazem prédios com quarto de criada. É uma desatenção enorme dos arquitetos.

Este livro é uma tentativa de complementar a história da arte, que ignora os edifícios comuns?

Durante muito tempo só se deu atenção a um dos extremos: os palácios e os palacetes. Depois do 25 de Abril os historiadores começaram a dar atenção ao outro extremo, os bairros sociais. O que me interessa são as pessoas comuns, porque os países fazem-se com as pessoas comuns. Quando disse a colegas que estava a fazer um livro sobre a casa, um deles respondeu-me: ‘Com coisas tão interessantes, fazer um livro sobre a casa?’. Mas sempre foi um tema que me interessou. Acho fantástico podermos ter um espaço em que quem determina as regras somos nós.