A leitura política da vitória sobre Bruxelas tem várias nuances de discurso. Começa por ser feita, de forma diplomática, por Mário Centeno. “Este é um orçamento diferente que mostra que há alternativa”, disse o ministro das Finanças ontem na apresentação pública do documento, recusando fazer um balanço de “vencedores e vencidos”.
O socialista Pedro Delgado Alves também é diplomático, quando conclui que o braço-de-ferro com a UE terminou com “uma posição de equilíbrio”. Usando o léxico dos últimos dias adotado pelos socialistas, denuncia “as pressões do PSD e CDS em Bruxelas”. Uma forma de deixar as instituições europeias ao abrigo de críticas.
Entre o PCP e o BE, porém, a Europa continua como a má da fita. O comunista João Oliveira saudou “os elementos positivos” no Orçamento do Estado, condenando a “ingerência” e a “pressão” da Comissão Europeia e das agências de rating no processo negocial com o governo português, que é apoiado pelo PCP.
Na mesma linha, a bloquista Mariana Mortágua diz que o OE “em larga medida cumpre o acordo” do PS com o BE. Um saldo positivo, perante “as pressões da Comissão Europeia, ativamente auxiliada pelos argumentos em Portugal do PSD e CDS”, que tiveram o efeito de tornar a versão final do OE “pior” do que o esboço enviado para Bruxelas.
Mortágua reivindica para o BE a parte de leão na vitória sobre a ortodoxia da UE. “Foi o acordo [do PS com o BE] que permitiu que não se fosse mais longe na chantagem de Bruxelas”, afirmou. E, curiosamente, alguma da austeridade fiscal acrescentada por Bruxelas para equilibrar as contas públicas até vai ao encontro do BE. O fim da isenção de IMI dos fundos imobiliários e o aumento da contribuição da banca são saudadas como vitórias por Mariana Mortágua.
Puxão de orelhas de Juncker
Ao longo da semana, deputados e dirigentes dos partidos à esquerda sustentaram a tese de “chantagem” da União Europeia. No Parlamento Europeu, o deputado comunista João Ferreira usou mesmo uma retórica temerária. “A Comissão Europeia está a realizar uma inqualificável operação de pressão e de chantagem. Sr. Juncker, acalme lá, por isso, os seus burocratas”, lançou o eurodeputado do PCP, esta terça-feira, aproveitando a presença do presidente da Comissão Europeia.
“O que está em causa neste orçamento é cumprir com compromissos assumidos com o povo português, é devolver aos portugueses uma parte daquilo que lhes foi roubado nos últimos anos, é parar o caminho de afundamento nacional”, atacou Ferreira na sua intervenção.
À direita, Paulo Rangel ajudou a elevar o tom do despique português. O social-democrata trouxe à baila uma entrevista ao jornal i do dirigente do PS Porfírio Silva, em que este dizia que “a União Europeia corre o risco de se transformar numa União Soviética sem KGB”. Rangel acusou o PS de antieuropeísmo, depois de fazer essa acusação ao PCP e ao BE.
Foi a gota de água para Jean-Claude Juncker que deu um puxão de orelhas aos eurodeputados portugueses. “Só houve praticamente debate sobre a política nacional. Não é este o Parlamento Europeu que eu desejava ter e não voltarei a responder a este tipo de questões”, protestou, apelidando de “política de partidos muito primitiva” o confronto entre a esquerda e a direita portuguesas no plenário de Estrasburgo.
Derrotas à esquerda e margem negocial
No balanço da guerra com Bruxelas, feito ontem, há algumas baixas lamentadas à esquerda, e que têm potencial para criar fricções com os sindicatos. A redução do horário de trabalho da Função Pública para as 35 horas, que já estava a ser contestada pela CGTP, pela calendarização arrastada para meados do ano, vai afinal ser empurrada para o final de 2016. O adiamento não está plasmado no Orçamento, mas haverá esse compromisso do Governo com Bruxelas.
Problemática é também a promessa do governo diminuir em 10 mil os funcionários públicos, mantendo a regra de uma entrada por cada duas saídas. Finalmente, há o cancelamento da redução da TSU para salários até aos 600 euros. Estas derrotas parciais dão mais motivos para PCP, BE e PEV não darem por encerrada a discussão do OE.
No PCP, João Oliveira notou ontem que “há outras matérias” que os comunistas esperam ver incluídas no Orçamento, em sede de especialidade. Na área educativa, vão propor o congelamento do valor das propinas e gratuitidade dos manuais escolares. Em matéria fiscal, o PCP apostará na redução da taxa máxima de IMI.
No BE também não se dá por terminada a discussão orçamental. “O Bloco de Esquerda ainda não desistiu” de mais medidas de apoio às famílias desfavorecidas, de redução dos custos energéticos e de melhoria nos serviços públicos. “Levaremos essas propostas à especialidade”, prometeu Mariana Mortágua.