Cavaco melhor do que Soares

Na segunda-feira seguinte ao Congresso do PSD na Figueira da Foz, dia 20 de maio de 1985, Maria Cordoeiro, secretária de Francisco Pinto Balsemão, interpelou-me ao pequeno-almoço no Xenu, snack-bar na Rua Duque de Palmela, por baixo do edifício do Expresso:

– Então, José António, o que me diz a isto? É o fim do PSD!

– O fim porquê? Quem é que ganhou?

Por qualquer razão que não recordo, eu não tinha acompanhado durante o fim de semana o Congresso do PSD nem sabia quem tinha ganho. Nessa época, a informação também não circulava à velocidade estonteante que circula hoje.

– Não sabe quem ganhou? O Cavaco. Vai ser o fim do PSD.

– Talvez seja o princípio… – respondi.

Maria Cordoeiro ficou escandalizada. O seu ‘chefe’ apoiara João Salgueiro para a liderança, e algumas reuniões preparativas do Congresso da Figueira haviam mesmo tido lugar no gabinete de Balsemão no edifício do Expresso. Vivia-se ainda o tempo da orfandade de Sá Carneiro, morto cinco anos antes num desastre de avião. Percebi num relance que Cavaco Silva poderia ser a solução.

A cimeira das flores

Pouco depois da sua eleição, Cavaco romperia a coligação do PSD com o PS – e o Governo do Bloco Central cairia. O encontro fatal entre Soares e Cavaco deu-se na sede do PS na Rua da Emenda. Quando Cavaco  entrou no edifício, havia flores por toda a parte. Porquê? Porque uns dias antes, perguntado sobre o que iria ser tratado na cimeira, Cavaco respondera: “Não vamos falar de flores…”. Soares, com o humor que se lhe reconhecia, encheu de flores a sede do partido. A reunião entre os dois homens ficaria assim conhecida como Cimeira das Flores – mas Cavaco não gostou da graça.

Logo nos primeiros tempos se percebeu que Cavaco Silva era um líder diferente. Seco, austero, projetava uma imagem de autoridade. Provocava até nos interlocutores um certo receio. Num universo político que fora dominado por advogados (Mário Soares, Sá Carneiro, Balsemão), Cavaco surgia com uma formação tecnocrática.

Até aí os políticos dedicavam-se sobretudo a falar. Ora, Cavaco substituiu as palavras pelos atos. Não falava bem, mas agia com determinação. Assim, por muito estranho que pareça, Cavaco Silva irá reconciliar os portugueses com o regime saído do 25 de Abril. Em 1985, os portugueses começavam a desesperar: nenhum Governo completara o seu mandato e nenhum partido obtivera uma maioria absoluta. Sá Carneiro conseguira-a, mas em coligação. E de qualquer modo morrera, já cá não estava. Cavaco mudará tudo, inaugurando uma nova era. Ocupará o poder durante 10 anos, obtendo nesse período duas maiorias absolutas de um só partido. Será um verdadeiro vendaval na política portuguesa.

A história do tabu

Entrevistei-o várias vezes nesse período, quer para o Expresso quer para a TV. Almocei e tomei pequenos-almoços com ele, sozinho ou acompanhado. Nunca, porém, fui íntimo dele – muito longe disso – porque tal não está na minha natureza e também porque é difícil ser íntimo de Cavaco Silva. Repare-se que este nunca trata os jornalistas pelo nome quando é entrevistado na TV – ao contrário de todos os outros políticos, que gostam de agradar aos jornalistas. Ele não faz nada para agradar.

Foi num pequeno-almoço com Cavaco que nasceu o célebre ‘tabu’, em 1995. Também foi numa entrevista que lhe fiz que ele designou os secretários de Estado por “ajudantes de ministro”. E contou-me, por exemplo, como fazia as remodelações ministeriais: sozinho num fim de semana em S. Bento, apenas com uma secretária a ajudá-lo. Fazia o convite a uma pessoa, mas não lhe dizia para que pasta era. Perguntava-lhe apenas se estava disponível para integrar o Governo. Assim, em relação a cada ministério em concreto, nunca se sabia se tinha havido ou não recusas ou se os escolhidos eram primeiras, segundas ou terceiras escolhas.

O Cavaco do início era mais genuíno, o do segundo mandato já era mais político, já tinha aprendido algumas manhas da classe política. Confesso que preferia o ‘primeiro’ Cavaco.

Intervenções com estrondo

Depois de sair do Governo, Cavaco remeteu-se ao silêncio. Mas quando intervinha fazia-o com estrondo. Os seus artigos na imprensa tinham um impacto enorme. Um texto sobre o Orçamento do Estado – a que Cavaco chamou O Monstro – teve enorme repercussão. As suas críticas à construção dos 10 estádios para o Euro 2004 ainda hoje são referidas. O artigo sobre ‘a boa e a má moeda’, que foi fatal para o Governo de Santana Lopes, foi-me entregue a mim. A coisa nasceu no casamento do fotógrafo Rui Ochoa com a fadista Kátia Guerreiro. Cavaco disse-me que tinha um artigo escrito sobre um tema económico e perguntou-me se o quereria publicar no Expresso. Quando me chegou às mãos, não percebi logo o seu alcance. Mas depois fiz manchete com ele – e foi o que se sabe.

A luta com Sócrates

Como fazedor que era, Cavaco tinha mais perfil para primeiro-ministro do que para Presidente da República. Mas não foi tão mau Presidente como se quer hoje fazer crer.

O grande artífice da campanha contra ele foi José Sócrates. Porquê? Porque Sócrates cedo percebeu que Cavaco seria o seu grande adversário político. O PSD estava fragilizado, sem capacidade para beliscar Sócrates, pelo que o seu único adversário à altura era mesmo Cavaco Silva.

Nas eleições para a reeleição de Cavaco, em 2011, Sócrates desencadeou um ataque nunca visto contra um Presidente da República, procurando queimá-lo com a questão das ações do BPN. O PS inventou mesmo um candidato – Defensor Moura – com o objetivo de ‘malhar’ em Cavaco.

As relações ficaram ao rubro – e no discurso após a reeleição  Cavaco Silva vingou-se, dando a Sócrates uma  resposta violenta. Mas aí as coisas começavam a ficar definidas: a vitória eleitoral de Cavaco era o início da derrota de José Sócrates. E este sabia-o.

No meio destas guerras loucas, quando Sócrates tentava fechar o SOL, Cavaco Silva convidou-me a ir a Belém e no fim da conversa disse-me enquanto me apertava demoradamente a mão: “Não desista, a bem do pluralismo da informação”.

A batalha do 2º mandato

A partir da queda de Sócrates, Cavaco empenhou-se numa batalha que iria perder mas que não abandonaria quase até ao fim do mandato: a promoção de um entendimento entre o PS e o PSD para fazer face às grandes reformas de que o país precisa.

Ao contrário do que se diz, Cavaco Silva nunca se colou ao Governo. Isso não está no seu ADN. Vetou vários diplomas, sobretudo os relacionados com os cortes nas reformas – usando uma linguagem contundente. E depois, na mensagem de Ano Novo de 2013, falou na “espiral recessiva” – à qual a esquerda chamou um figo, aproveitando a expressão à saciedade.

Mais tarde, aquando da crise do “irrevogável”, quando todos pensavam que ia aprovar a solução proposta pelo primeiro-ministro Cavaco, fez um célebre discurso a obrigar o PSD e o PS a negociarem um acordo para o pós-troika, dando em troca a antecipação das eleições. Tudo ficou em águas de bacalhau – porque o líder do PS, António José Seguro, estava acossado e não tinha força para fazer nenhum acordo com o PSD. Mas a intenção de Cavaco ficou.

Depois foi o período final da troika, em que o Presidente da República, aí sim, apoiou de um modo geral a ação do Governo. Mas o contrário é que seria de estranhar. Quando quase todos falavam de um 2.º resgate, o Governo conseguiu evitá-lo – e Cavaco contribuiu para isso, empenhando-se interna e externamente. Mas onde está o mal de o ter feito?

Mais importante que Soares

A influência de Cavaco Silva nos primeiros 40 anos do regime democrático foi maior do que a de Mário Soares.

Soares já vinha de trás, dos tempos da ditadura, e o seu combate – antes e depois do 25 de Abril – deu-lhe justamente a aura de ‘homem da liberdade’. Mas o ‘homem da democracia’ foi Cavaco Silva.

Quando Cavaco aparece, Soares estava queimado como primeiro-ministro. E seria Cavaco a levar os portugueses a acreditar que os governos da democracia podiam funcionar bem e que a instabilidade política não era uma fatalidade.

Cavaco Silva é ainda o político com maior currículo eleitoral, pois venceu quatro eleições com mais de 50% dos votos, enquanto Soares só venceu uma (a da reeleição como Presidente, visto que a outra foi numa 2.ª volta das presidenciais). Além disso, Cavaco bateu Soares numas eleições para Belém. 

De certo modo, pode dizer-se que Cavaco Silva percorreu um caminho inverso ao de Mário Soares. Este foi um primeiro-ministro medíocre e depois ressuscitou como Presidente da República. Cavaco teve uma grande ação como primeiro-ministro, e sai de Belém sob uma chuva de críticas. Justas? Injustas?

As críticas a Cavaco

Cavaco Silva foi, como se disse, alvo de uma onda de críticas nunca antes vistas a um Presidente da República. Sampaio, apesar de ter demitido um Governo com maioria no Parlamento, nunca foi tão atacado. É certo que Cavaco teve o episódio infeliz de dizer que a reforma não lhe chegava para viver. Aquilo que noutras circunstâncias seria um fait divers adquiriu, numa sociedade que estava em carne viva com a austeridade, um efeito catastrófico para o Presidente. Muitas pessoas ficaram chocadas – e os seus inimigos aproveitaram a ocasião para o atacarem de frente.

Mas os ataques a Cavaco são explicáveis por razões mais fundas:

1. A hostilidade de José Sócrates (que acabou por ser copiada por outros atores menores);

2. O ter vencido a esquerda em cinco eleições (três legislativas e duas presidenciais), tornando-se o seu grande adversário;

3. Ser, até à sua eleição, o único Presidente não proveniente da esquerda;

4. Não ter querido demitir o Governo de Passos Coelho.

Este último facto uniu toda a esquerda portuguesa: todos queriam que Cavaco o fizesse.

A cereja em cima do bolo para o ódio dos anticavaquistas foi o discurso em que Cavaco hostilizou a hipótese de um Governo PS-PCP-BE, alegando depender de partidos antieuropeístas. Mas não é verdade que, ainda recentemente, o cauteloso Durão Barroso dizia exatamente o mesmo: que, com um Governo apoiado naqueles partidos, as reformas de que o país precisa serão impossíveis?

O político com mais visão

Cavaco Silva foi talvez o Presidente da República mais odiado e o político português com mais visão.

Em 1985 ‘agarrou’ a democracia, quando as pessoas começavam a desacreditar dos políticos.

Como primeiro-ministro, inaugurou um ciclo de estabilidade e de desenvolvimento sem precedentes, com grandes obras que mudaram a face do país, com privatizações que aligeiraram o setor público, com o aparecimento da TV privada, com crescimento económico, etc.

E, como Presidente da República, teve a visão de perceber que só com um pacto PS/PSD poderão ser feitas as reformas indispensáveis para Portugal sair do buraco em que se encontra e inaugurar um ciclo novo. Não o ‘tempo novo’ de que falava Sampaio da Nóvoa mas um verdadeiro ‘ciclo novo’. Talvez Cavaco tenha sido ingénuo. Os grandes partidos ainda não estavam (nem estão) preparados para isso. Mas o futuro dará razão a Cavaco Silva.