Marcelo invoca estado da economia para vetar lei

O Presidente vetou a lei que permitiria ao fisco o acesso a contas bancárias. «Patente inoportunidade política», diz o PR, porque prejudica o investimento e a situação económica do país.

Marcelo fingiu acreditar que o Governo nunca iria avançar com a lei anunciada em pleno Verão que permitia o acesso do fisco às contas bancárias. Mas, no mesmo dia (25 de agosto), em que dizia aos portugueses que a lei do fisco «felizmente não se coloca e isso é uma boa notícia porque se se colocasse da minha parte não teria acolhimento algum», confidenciou em privado que «a teimosia de António Costa» não era para menosprezar. O que se revelou inteiramente verdade.

Costa decidiu na mesma enfrentar o Presidente, aprovou o decreto-lei e a resposta de Belém, praticamente pré-anunciada, chegou ontem formalmente e com estrondo. Não são apenas os argumentos jurídicos que fazem o Presidente vetar o seu primeiro decreto do Governo – o que, legalmente, o anula – mas a sua «patente inoportunidade política» tendo em conta a situação económica e bancária do país.

No texto que acompanha o veto, o Presidente escreve: «Vivemos num tempo em que dois problemas cruciais, entre si ligados, dominam a situação financeira e económica nacional. O primeiro é o de que se encontra ainda em curso uma muito sensível consolidação do nosso sistema bancário».

O segundo está «intimamente associado» e é o «da confiança dos portugueses, depositantes, aforradores e investidores, essencial para o difícil arranque do investimento, sem o qual não haverá nem crescimento e emprego, nem sustentação para a estabilização financeira duradoura».

Marcelo, que passou a semana inteira a fazer discursos sobre o problema da falta de investimento em Portugal, afirma que o decreto-lei que abre as portas do fisco às contas bancárias acima de 50 mil euros é «um fator negativo e mesmo contraproducente para a presente situação financeira e económica nacional».

Os argumentos jurídicos para o veto já estavam arrumadinhos na cabeça de Marcelo desde o famoso dia 21 de agosto em que afirmou que a lei não existiria. No veto, o Presidente da República invoca que o decreto-lei em que o Governo afirma estar a transpor uma diretiva europeia de troca de informações fiscais «simplesmente vai mais longe e aplica o mesmo regime de comunicação automática às contas em Portugal de portugueses e outros residentes fiscais no nosso país, mesmo que não tenham residência fiscal nem contas bancárias no estrangeiro».

A parte do decreto que se limita a transpor a diretiva europeia «é indiscutível» para o Presidente e «corresponde a fundamentais exigências de maior transparência fiscal transfronteiriça, defendidas pela OCDE, visando controlar quem tenha contas bancárias em Estados diversos daqueles em que reside ou declara residência fiscal».

Marcelo Rebelo de Sousa não concorda com o facto de, apesar do Governo ter limitado aos saldos acima dos 50 mil euros o acesso do fisco, a lei não exigir «para sua aplicação, qualquer invocação, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, designadamente, de indício de prática de crime fiscal, omissão ou inveracidade ao Fisco ou acréscimo não justificado de património».

No texto que acompanha o anúncio do veto, o Presidente lembra também «que existem já numerosas situações em que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode aceder a informação coberta pelo sigilo bancário, sem dependência de autorização judicial, nomeadamente quando existam indícios de prática de crime em matéria tributária, de falta de veracidade do declarado, de acréscimos de património não justificado».

Marcelo invoca ainda o parecer negativo da Comissão Nacional de Proteção de Dados de 5 de julho que, cita o Presidente, «questionara a conformidade do novo regime, na parte em causa, em especial com o princípio constitucional da proporcionalidade, ou seja, o uso de meios excessivos – por falta de regras especificadoras de indícios ou riscos justificativos – no sacrifício de direitos fundamentais» que não tinham sido ultrapassados «com os ajustamentos pontuais introduzidos na versão definitiva do diploma».

Marcelo lembra ainda que o decreto impunha um sistema «mais irrestrito do que o vigente na maioria dos Estados-membros da União Europeia».

O ponto 5 da justificação do veto é a falta de debate público. Para o Presidente da República não existiu o «indispensável e aprofundado debate público, exigido por uma como que presunção de culpabilidade de infração fiscal de qualquer depositante abrangido pelo diploma, independentemente de suspeita ou indício».

O veto presidencial já era tão pré-anunciado – na realidade, era-o desde o dia 25 de agosto, quando Marcelo afirmou que uma lei destas não teria o seu «acolhimento» – que, no final da reunião do Conselho de Ministros, antes de o Presidente da República ter dito o que quer que fosse sobre o assunto desde que recebeu a lei, a ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, afirmou que o Governo estava à espera do veto presidencial. Nunca um veto de Belém tinha sido anunciado no final de uma reunião do Conselho de Ministros pelo Governo em funções.

«Aguardaremos a devolução do diploma pelo senhor Presidente da República e as razões por ele invocadas para rever a nossa posição, sendo que as duas primeiras partes [acordo com os Estados Unidos e transposição de uma diretiva comunitária] terão que ser naturalmente regulamentadas com caráter de urgência, tendo em conta as obrigações internacionais do Estado português nessa matéria e também as consequências que adviriam da não regulamentação para os bancos portugueses», disse a ministra da Presidência, para espanto dos observadores mais institucionais.