“Paz através da força será o centro da nossa política externa.” É com esta frase que Donald Trump abre as hostilidades na secção dedicada à estratégia de atuação no exterior do seu programa eleitoral. Um pouco mais à frente, o presidente eleito faz tenções de garantir que os “seus” EUA vão “prosseguir operações e coligações militares agressivas para esmagar e destruir o Estado Islâmico”.
Quem ler estas duas frases sem olhar para o restante programa ou sem ouvir algumas das declarações mais marcantes do candidato Trump pensará seguramente que a partir de janeiro de 2017, altura em que o presidente Trump tomará as rédeas da Casa Branca, a maior potência mundial vai fazer do intervencionismo externo uma das suas bandeiras.
As restantes pessoas, contudo, lembram-se do candidato Trump nacionalista, protecionista, crítico sobre os gastos excessivos na NATO, crítico sobre a influência asfixiante da China na economia americana, que ameaçou rasgar tratados e anular acordos, pouco entusiasmado com o seu papel de “polícia do mundo” e, acima de tudo, decidido a arrumar a casa, e não o mundo.
Perante tamanhas contradições e enquanto não é revelado o nome do futuro secretário de Estado, dos conselheiros e estrategas em matéria de polícia externa, as democracias, as semidemocracias, os regimes híbridos e os autoritários espalhados por esse mundo fora aguardam ansiosamente por uma das estratégias diplomáticas mais imprevisíveis da história recente dos EUA.
A Europa e o sorvedouro NATO
Donald Trump acha que os norte-americanos contribuem em demasia para o orçamento de defesa da NATO – perto de 70% do valor total dos encargos. Disse-o em diversas ocasiões e chegou a ameaçar reduzir esse investimento, caso os restantes membros da aliança não se mostrem dispostos a aumentar as suas contribuições.
Esta tomada de posição teve um impacto tal junto da aliança atlântica que o seu secretário-geral sentiu a obrigação de avisar Trump de que, face à “deterioração drástica da segurança” na Europa em virtude do cada vez maior atrevimento russo, “não era altura de os EUA abandonarem a NATO” ou de “questionarem o valor da parceria”. Para além disso, lembrou Jens Stoltenberg, num artigo de opinião publicado, no sábado, no “The Observer”, para o caso de o presidente eleito estar esquecido, “mais de 1000” soldados europeus morreram no Afeganistão, na operação militar de resposta aos ataques do dia 11 de setembro. “Ir sozinho não é opção”, repreendeu o norueguês.
Um eventual desinteresse dos EUA da NATO e do investimento na defesa dos países europeus junto às fronteiras russas resultaria, previsivelmente, num encargo demasiado dispendioso para a aliança e, particularmente, para a União Europeia. Por outro lado, poderia contribuir para aumentar (ainda mais) o alcance do braço de Vladimir Putin na região. Segundo um membro da direção editorial do “Washington Post”, um cenário desses levaria as “pequenas nações da Europa central a apressarem-se a estabelecer os seus próprios acordos” bilaterais com o presidente russo que, aproveitando a aproximação, investiria como um elefante no meio da sala europeia, com o reconhecimento – legal ou simplesmente tácito – da Crimeia enquanto parte integrante da Federação Russa.
O receio europeu não é, no entanto, partilhado por todos. Nigel Farage, Marine Le Pen ou Geert Wilders, dirigentes políticos dos partidos de extrema-direita do Reino Unido, França e Holanda, respetivamente, congratularam efusivamente o novo presidente dos EUA. A candidata à presidência francesa disse mesmo à BBC que a vitória do magnata “torna possível aquilo que anteriormente se apresentava como impossível”. Tendo em conta os boatos sobre compromissos já acordados com a equipa de Trump, aliados não vão faltar aos americanos na ala anti-imigração e populista europeia.
O Médio Oriente e a sombra de Putin
A relação entre o presidente Trump e o chefe de Estado russo é, pois, um dos principais focos de imprevisibilidade na política externa dos republicanos. Durante a campanha, o segundo elogiou o primeiro, que retribuiu a gentileza.
Apesar da troca de mimos, uma aliança entre Putin e Trump é vista pela grande maioria da imprensa e dos especialistas como uma impossibilidade histórica. Numa entrevista ao “SOL” no início do mês de outubro, o professor Tiago Moreira de Sá, da Universidade Nova de Lisboa, embora prevendo uma procura de “entendimentos sobre assuntos pontuais”, defendeu que uma “aliança entre uma potência de statu quo – como são os EUA – e uma potência revisionista – como a Federação Russa – é uma impossibilidade histórico-teórica nas relações internacionais”, tendo em conta os interesses antagónicos em várias regiões do globo.
Nos últimos anos, a busca desses interesses divergentes teve como principal palco o Médio Oriente, particularmente na Síria e no Iraque. Putin apoia abertamente o presidente Bashar al-Assad na reconquista do território sírio e Barack Obama opta pelo amparo militar ao exército iraquiano e às forças rebeldes sírias.
Pouco se sabe do plano de Trump na região, até porque o próprio se recusou novamente a levantar o véu sobre a forma como pretende “esmagar” o grupo terrorista Estado Islâmico, numa entrevista à CBS, este domingo, sob o pretexto de não querer “beneficiar o inimigo”.
De qualquer forma, é nesta área do mundo que o novo presidente terá de tomar as opções mais difíceis, particularmente em relação a Israel – a quem prometeu reconhecer Jerusalém como capital -, ao Irão – de quem disse estar novamente armado, depois de um acordo “horrível” com Obama -, à Arábia Saudita e à própria Síria. Apoiará Assad ou os rebeldes?
Putin certamente aproveitará o período de transição presidencial norte-americana para densificar os bombardeamentos em Alepo e noutras cidades tomadas pelos rebeldes, enquanto espera por planos mais concretos da administração Trump.
A China comercial e a China belicista
“Não podemos permitir que a China viole o nosso país”, dizia o candidato Trump em maio, num comício, citado pelo NPR.org, criticando as táticas comerciais de Pequim que, como veio a defender insistentemente daí para a frente, contribuíam para o encerramento de empresas norte-americanas e para o aumento do desemprego, devido aos baixos custos de mão-de-obra e produção comparados com aquilo que é praticado nos EUA.
A abordagem do presidente eleito para com a China poderá ser o maior desafio da sua estratégia de política externa. Por um lado, Trump já prometeu ressuscitar o setor industrial do país, nomeadamente através do aumento das taxas de importação de produtos chineses. Por outro, a China é o segundo maior parceiro comercial dos americanos, pelo que uma medida deste género implicaria uma redução drástica do fluxo de trocas entre os dois gigantes.
Numa outra perspetiva e à semelhança da tomada de posição sobre a NATO, o magnata entende que os EUA contribuem em demasia para a segurança da Coreia do Sul e do Japão. Neste sentido, a opção norte-americana por uma eventual redução da presença militar na região abrirá seguramente as portas ao aumento das forças de combate chinesas no Pacífico, como, de resto, tem vindo a verificar-se.
A razão pede uma gestão equilibrada da abordagem diplomática e estratégica para estes dois campos. Até porque do lado de Pequim – mesmo estando a despender cada vez mais dinheiro em capacitação militar – não é de todo lucrativo que os EUA se fechem em torno de medidas protecionistas. Trump e Xi Jinping já falaram, segundo o presidente chinês, e terão de voltar a falar, para bem das suas economias e, do ponto de vista dos aliados norte-americanos do Pacífico, da segurança.
Isolacionismo ou intervencionismo?
À Europa, ao Médio Oriente e à China ainda poderíamos juntar Cuba, o México, o Reino Unido, a Austrália, os países africanos ou os muçulmanos espalhados pelo mundo, como exemplos de Estados, regiões e pessoas que podem ver as suas relações com os EUA alterarem-se substancialmente e que, em ansiedade, aguardam a definição de uma estratégia.
Donald Trump prometeu “tornar a América novamente grande” mas, para cumprir o seu desígnio, terá de encontrar um equilíbrio entre uma estratégia protecionista, que já disse querer implementar, e uma atuação externa pouco ativa, que também lhe apraz.
Uma coisa é certa: isolacionismo intervencionista é coisa que não existe. Durante os próximos quatro anos, o presidente eleito terá de optar entre um e outro, com a consciência plena de que o mundo mudará, quer opte por uma ou por outra estratégia.