Por outras palavras, significa isto que, após uma ascensão cujo início remonta a 2004 – quando ultrapassámos a barreira dos 60% do PIB, limite máximo imposto pelas regras de Maastricht –, acabámos de atingir um recorde histórico de dívida pública: 133,1% em percentagem do PIB.
Mas deixemos as percentagens, por agora.
À saída daquele que talvez tenha sido o período mais negro que o país viveu em democracia, Portugal caminha, vagarosamente, no sentido de um futuro incerto, mais uma vez. Contudo, se tivermos em conta o despesismo inconsequente e sem retorno, bem assim como a fraca consolidação orçamental tão tradicional dos executivos socialistas, é caso para dizer que este cenário já era esperado. E desta vez é mais grave: o Governo é viabilizado por dois partidos de esquerda que, para além de serem assumidamente contra a iniciativa privada, não têm um lampejo de visão económica.
Condicionado pela linha anticapitalista e pela agenda sindical dos partidos que lhe servem de base, a “engenhoca” de António Costa tem vindo a seguir um caminho assaz keynesiano, baseado na reposição de rendimentos e no estímulo da procura interna, descurando olimpicamente as necessidades e o potencial do sector privado.
“A economia vai disparar”, diziam, num tom seguro e tonitruante. Resultado: fracasso.
O falhanço é claro. Se compararmos os dois Orçamentos (OE2016 vs OE2017), constatamos que há um distanciamento total das políticas defendidas ao longo do ano corrente, em virtude de uma nova visão, alicerçada agora no crescimento das exportações, na captação de investimento privado e no incremento do investimento público. Dir-se-ia que o Governo “caiu na real”, embora não o admita de uma forma directa, nem tão-pouco honesta.
Da minha parte, quero ver se, com estas medidas, o investimento privado e as exportações crescem, de facto. Aliás, todo este malabarismo associado à estimativa rápida do INE é para esquecer. Se a economia cresceu razoavelmente no terceiro trimestre de 2016, via aceleração das exportações, isto deve-se fundamentalmente a um bom ano de turismo, numa altura em que se regista uma subida dos preços do petróleo. Não é, de todo, uma consequência das políticas deste Governo.
Mas vamos ao Orçamento do Estado para 2017.
Não há dúvida de que é um mau Orçamento. Está longe de ser justo ou equitativo para as famílias e para os pensionistas; está longe de reduzir os níveis de pobreza e de exclusão social; está longe de cortar as gorduras das administrações públicas e de garantir, assim, uma maior eficiência do Estado; está longe de assegurar as condições necessárias para uma Justiça mais eficaz e mais célere nas várias regiões; está longe de propiciar a qualidade e o acompanhamento que requerem os utentes da saúde pública ou os alunos do ensino do Estado; está longe de responder às reais necessidades das empresas, que continuarão a viver num ambiente económico praticamente estéril, sem estímulos ao empreendedorismo, à captação de investimento ou à dinamização da sua actividade no país. E não venham dizer que o Web Summit é que nos vem salvar.
Está, também, longe de “virar a página da austeridade”. Pelo contrário. Não baixa impostos directos, mas sobe vários impostos indirectos. Aqueles que são pagos pelo Zé Pobre e pelo João Rico, isto é, por todos os contribuintes, de forma indiscriminada.
Há algumas medidas que, de tão absurdas e displicentes, devem mesmo ser realçadas.
Lembra-se do IVA da restauração? Uma medida “séria” que ia estimular a actividade dos empresários do sector e que, consequentemente, propiciaria a “criação de emprego e de riqueza”? Saiu gorada. Como se previa, não passou de uma medida eleitoralista que não baixou os preços das refeições nos restaurantes, que não criou um único posto de trabalho e, como se não bastasse, que acaba por se traduzir numa perda de 400 milhões de euros nos cofres do Estado. Isto faz algum sentido?
Os impostos têm três finalidades: a da receita fiscal, a da equidade e a do desenvolvimento económico. Como o IVA da restauração é o exemplo perfeito daquilo que não se deve fazer, pensemos antes no adicional ao IMI. É razoável? Ora, do ponto de vista da contribuição para a receita fiscal, até poderá fazer sentido. É mais fácil tributar património do que rendimentos ou capitais. E aqui, o Estado pode arrecadar 300 milhões de euros. Não obstante, em matéria de equidade e de desenvolvimento económico, confesso que tenho sérias dúvidas de que este imposto seja justo ou sequer minimamente relevante para o estímulo à economia. Mais uma vez: fracasso.
É claro que há mais e melhor. Para os herdeiros dos que morreram mas tiveram a sorte de ser ricos em vida, parece que vem aí um novo imposto sucessório. Na área da restauração – qual obsessão do Governo –, o imposto sobre o vinho parece já estar no prelo, assim como o fat tax que visa taxar os produtos com excesso de sal, açúcar e gorduras. A criatividade não conhece limites entre os BFF da geringonça.
Por outro lado, no que diz respeito à economia pura e à dinamização da actividade empresarial, a acção deste governo tem sido “tímida” e “discreta”. Começo a pensar que o Ministro da Economia foi de férias ou voltou a dar aulas na Universidade do Minho. Seja como for, isto é inaceitável.
A política económica, numa economia periférica tão endividada como a nossa, não se pode esgotar em palestras da “Web Summit”, em conversa sobre o “Indústria 4.0” ou nos eventuais fundos estruturais do “Portugal 2020”. Não. A política económica faz-se indo ao encontro das necessidades das nossas empresas, no sentido de contribuir com soluções para a sua implementação e para a dinamização sustentável da sua actividade. É do sector privado que a economia vive.
Em Portugal, as pequenas e médias empresas representam 90% do tecido empresarial. Motor do sector privado, são aquelas que têm sido mais fustigadas pela (ausência de) visão económica do Governo, vivendo um ciclo de austeridade nunca até hoje experimentado. Dois exemplos nítidos são o IRC ou as faturas de energia exorbitantes.
E com uma dívida pública recorde, um défice restritivo, o investimento direto externo em queda, a confiança a minguar, a poupança nacional em mínimos históricos e, como se não bastasse, inflação praticamente nula – a nossa sorte são os programas de quantitative easing do BCE –, é bom que tenhamos isto em conta.
Há que fortalecer o sector privado, não fragilizá-lo. Entre várias outras medidas de fomento ao tecido empresarial, uma baixa de IRC – significativa mas sustentável – daria mais folga às empresas, garantindo mais liquidez para reinvestirem na sua actividade e criar mais postos de trabalho. Se não o fizermos, continuaremos também a assistir a um sem-número de empresas nacionais a pagar impostos em países como a Irlanda ou a Holanda. Outras fecharão as portas.
Mais: o IRC, em Portugal continental, continua nos 21%. Em Dezembro de 2013, PS, PSD e CDS estabeleceram um compromisso, no sentido de baixar este imposto para um valor entre os 17% e os 19%, em 2016. O Governo não o cumpriu, o que é inqualificável.
Já diziam os romanos que pacta sunt servanda, isto é, “os pactos são para cumprir”. É lamentável que uma medida que foi acordada e que seria bastante positiva para o país tenha sido posta de lado em virtude do capricho ideológico de uns e da sobrevivência política de outros.
A votação global do documento final do Orçamento do Estado para 2017, depois do debate na especialidade que começa esta semana, está agendada para dia 29 de Novembro.
Entretanto, a dívida pública bateu nos 244,4 mil milhões de euros e atingimos um máximo histórico de 133,1% em percentagem do PIB. O Estado, que impõe dietas, continua a engordar. É um autêntico (des)Governo.
E ninguém liga.
Bernardo Silveira Pinheiro