Como pode a geração mais jovem do PS continuar o que Mário Soares construiu?
Ter a coragem de arriscar. Para mim, a coragem de Soares e a capacidade que tinha de decidir eram as suas principais características. Vejo o pragmatismo de Soares como positivo e não como depreciativo, porque é um pragmatismo centrado na ação, na necessidade de compromissos e de trazer os ideais da abstração para a realidade. Não vejo isso como um pragmatismo que trai valores e princípios, mas sim como um pragmatismo que os concretiza com a complexidade que isso exige.
A principal característica de Soares para mim é o gosto da ação, a responsabilidade da ação e os riscos inerentes à ação.
Diz-se muito que já não há políticos como Mário Soares. A vossa geração sente-se diminuída com essa conversa?
A grandeza de um homem também é tributária da realidade em que esse homem está situado. Soares foi afortunado porque o tempo que viveu permitiu-lhe ser grande. Depois, ele próprio foi grande porque esteve à altura dessas circunstâncias. As circunstâncias mudaram. Não sou muito daquelas pessoas que olha para o passado com nostalgia como se estivesse povoado por seres de enorme grandeza e agora a contemporaneidade cheia de pequenas criaturas medíocres. Podemos admitir até que se calhar na política há hoje mais medíocres do que havia…
Admite mesmo que há mais medíocres do que havia?
Como hipótese teórica, pode existir. É normal. Uma democracia quando se constitui é natural que atraia um determinado tipo de pessoas que não são exatamente as mesmas que quando essa democracia está consolidada. Espera-se que em momentos de crise pessoas que não sentiriam muita apetência para participar na vida pública respondam ao chamamento da situação. Como hipótese teórica podemos assumir que em momentos críticos há pessoas com mais valor e acima da média e em momentos de maior normalidade essas pessoas não terão essa disponibilidade que tinham. Para mim, as circunstâncias são sempre muito importantes. Mas essa característica de Mário Soares, a coragem de arriscar, o de perceber muitas vezes que o cálculo infinito nos leva ou à inação ou então a soluções não ideais – quando não queremos correr riscos escolhe-se a ação que menos nos expõe – é exatamente o contrário do que eu identifico em Mário Soares. E essa característica concreta, sem entrar aqui no endeusamento, nem na hipérbole do heroísmo pessoal, mas essa característica concreta de perceber que na ação nunca temos a certeza de nada e que o calculismo com o objetivo de minimizar os riscos é, num certo sentido, a negação da ação política… essa característica que muitas vezes as pessoas associam a imprudência, se calhar a falta de ponderação, a não se ser tão cerebral… Entendo que essa característica foi muito útil ao longo de diferentes momentos da história onde ele sempre, no contexto específico onde agiu, a manifestou.
Que momentos o marcaram mais da história política de Mário Soares?
São tantos. Há um que eu valorizo particularmente, porque exprime um dos valores que mais admiro em Mário Soares, que é o reconhecimento do valor da democracia e do pluralismo. Ao mesmo tempo que tinha o PCP como seu principal adversário, lutou pela legalização do PCP e pela participação plena do PCP na vida política democrática com que ele sempre sonhou e pela qual batalhou. Acho que esse é um gesto de enorme grandeza e clarividência política. Não estou só a elogiar a magnanimidade de Soares. Não é uma magnanimidade, é o reconhecimento de que era necessária a participação do PCP na vida política. Mas essa capacidade de em simultâneo combater ferozmente o PCP e defender também ferozmente a não ilegalização desse partido e a integração desse partido na vida política que ele tentou construir em certa medida contra esse partido é, para mim, um sinal de enorme maturidade política. E de coragem também. Se calhar até teria bastante apoio popular na altura se defendesse a ilegalização do PCP. Se calhar outros políticos tê-lo-iam feito. Ele não fez e acho que o país lhe deve agradecer por isso. É a marca do verdadeiro democrata.
Soares gostava muito da geração mais jovem do PS. Lembra-se de quando é que teve o primeiro encontro com Mário Soares?
Lembro. Foi o Pedro Nuno Santos que disse que devíamos “ir ao Soares”.
Quando é que isso foi?
No início do consulado de António José Seguro. Achávamos que as coisas não estavam a decorrer como nós entendíamos adequadas. E, portanto, foi a primeira vez que me encontrei com Mário Soares. Ele não nos deu qualquer acolhimento porque nessa altura não punha em causa o secretário-geral do PS. Depois de várias reuniões, passou a fazê-lo. Foi a primeira vez que o conheci pessoalmente. Quer dizer, conheci-o quando tinha 10 anos, em 1986, o meu pai levou-me à sede da campanha, quando foi a vitória [presidencial] para dar um beijinho ao Soares. Mas isso não conta. Aí, na realidade, foi o meu pai que me levou como adereço para dar um beijinho. Conhecer Soares, falar com ele, foi a partir do final de 2011, início de 2012.
Inicialmente, Soares não vos deu conversa…
Não. Não nos deu trela nenhuma. Zero.
Mas, de facto, a partir de 2013 Soares começa a ser crítico de Seguro, nomeadamente quando começa a organizar aquelas reuniões da Aula Magna, onde vocês estiveram presentes, outros partidos de esquerda, mas não Seguro…
Embora António Costa tenha estado presente…
Nessa altura, a vossa relação com Soares já era muito mais próxima…
Sim, já era de grande proximidade. Eu, que não conhecia Mário Soares, quando o Pedro Nuno diz ‘vamos falar com o Soares porque é importante”, eu reagi: “Mas Soares tem 80 e tal anos… Vamos falar com ele por respeito e deferência?”. A resposta foi: “Não, não. Vamos falar com ele porque apesar dos 80 e tal anos, vale mesmo a pena”.
Isso disse o Pedro Nuno Santos?
Disse o Pedro Nuno e diziam as pessoas que iam falar regularmente com Soares. Como eu era um neófito nestas coisas achava que íamos lá para conhecer um velho ancião. Mas não. Era porque não era assim tão velho ancião como eu podia julgar. E, de facto, apesar da fragilidade física de Mário Soares que já era evidente em 2011, logo nessa altura eu percebi que apesar de velho e de não estar no auge da sua vitalidade conservava todas aquelas características que o tornaram um grande político.
E também vos ajudou a derrubar António José Seguro…
Soares fez aquilo que fez ao longo da sua vida toda. Olhou para a realidade, identificou um problema e depois fez tudo o que estava ao seu alcance para o resolver.
Foi a última batalha dele?
Foi uma das últimas, sim. E eu sou daqueles que olha para Mário Soares como um todo. Não tenho a versão IKEA de Soares, por módulos, a la carte. A vida de uma pessoa é uma narrativa e só se compreende quando a narrativa acaba. Olhando para trás, o que vejo em Soares não é como muita gente diz um pragmatismo sem princípios e, portanto, com enormes descontinuidades, um percurso errático, eu vejo o contrário. Um percurso de enorme unidade, um todo coerente e um percurso de alguém que foi sempre o mesmo em todos os momentos, mesmo quando parece ter agido de forma diferente do que o fez no passado.
Teve contradições…
Estou a falar dos grandes momentos, a luta contra a ditadura, a consolidação da democracia no PREC, a Europa, depois as críticas à Terceira Via. Aquilo que para alguns é um percurso incoerente e errático, eu vejo o pragmatismo no bom sentido. Soares concretizou os princípios em que acreditava, à luz do que as circunstâncias exigiam e fê-lo consistentemente e coerentemente ao longo da vida.
Sérgio Sousa Pinto, grande amigo de Mário Soares, disse no último congresso do PS que vinha defender “o partido de Mário Soares”. Desde que foi formada esta solução política, Soares já tinha deixado de fazer intervenções políticas. Acha que Sérgio Sousa Pinto, que não defende esta solução, estava também a dizer que Soares nunca se aliaria ao PCP…
Acho que quem faz essas afirmações trai a memória de Mário Soares. Aqui socorro-me de passagens do debate de Soares com Cunhal em que uma das críticas que ele faz a Cunhal é: “O dr. Cunhal está sempre a criar grandes dicotomias e a pôr tudo em categorias estanques, reacionário ou progressista, isso é uma visão dogmática da realidade”. Eu espero que os militantes do PS, 40 anos depois, não caiam no erro contrário mas de natureza igual, socorrer-se de categorias estanques e dogmáticas que criam dicotomias que são artificiais. O pragmatismo de Soares e a sua clarividência fá-lo-iam sempre ler as situações concretas e as necessidades do momento. E como demonstrou a Aula Magna onde incluiu o PCP e o Bloco, não me parece que Mário Soares olhasse para aquilo que está a acontecer como uma traição ao que aconteceu no PREC, mas apenas uma luta com base em outras prioridades. Se para fazer isto tivéssemos que transigir nos valores pelos quais lutamos em 74-75 aí tenho a certeza que Soares diria sempre “nem pensar”. Mas como não é isso que está em causa não me parece que isto constitua qualquer tipo de traição ao Mário Soares. Dizer que estamos impedidos porque a natureza do PS é ser adversário do PCP e do BE é cair no mesmo erro de Cunhal. Num certo sentido, Soares foi a pessoa que viu isto [o acordo com PCP e BE] antes de todos os outros, como viu tantas coisas antes de todos os outros, ao longo da sua vida.
Lembra-se de histórias com Soares daquelas reuniões de conspiração?
Ele era muito mais otimista do que eu em relação a tudo. Quer nas dificuldades do PS, quer da Europa, ele tinha sempre um “otimismo irritante”, muito mais do que António Costa, em relação a tudo. Onde divergimos mesmo muito era que ele tinha um enorme fascínio por Barack Obama, eu tive na altura da primeira eleição e depois deixei de ter. E isso ele não me autorizava (risos).
O Novo Banco vai ser nacionalizado?
A minha posição é muito simples. O ajustamento do sector bancário português foi um fracasso durante o período da troika e hoje há um problema que todas as instituições públicas e privadas identificam como sendo um problema do país. Quer FMI, Comissão Europeia, OCDE, agências de rating concordam que o setor bancário é um dos principais problemas do país. E porquê? Por causa da qualidade dos seus ativos e o problema do NPL (non performing loans), de baixa rentabilidade. Defendo a nacionalização porque sem resolver este problema o setor está num estado tal que não é compatível com uma venda aceitável. A nacionalização cria espaço para resolver este problema.
Nacionalização temporária?
Eu não ponho nenhum limite temporal. Defendo a nacionalização porque permite tirar um carimbo da testa do Novo Banco que o prejudica, que é ser um banco transitório com uma data para vender. É uma benesse para qualquer comprador e uma dificuldade para um vendedor. E depois é preciso olhar para aquele banco juntamente com a Caixa e com os outros bancos e procurar uma solução sistémica para a rentabilidade dos ativos. A natureza temporal ou não da nacionalização é um problema posterior. Esta dificuldade em vender o banco, sem que o contribuinte subsidie o comprador, mostra que é impossível vender bem! Se é impossível vender bem temos que tirar consequências disso.
Mas a nacionalização é um processo muito complexo…
É tudo muito complexo. Não digo que não há dificuldades legais. Mas se o sistema financeiro português carece de uma reforma sistémica, estrutural que ainda não foi feita e se esse é o verdadeiro problema, então é uma negociação que não só vale a pena como é necessária. Não podemos fugir dos verdadeiros problemas e de possíveis soluções só porque elas são difíceis. Não temos outra alternativa senão encará-lo de frente.
O Novo Banco tem que ser recapitalizado…
Mais do que ter que ser recapitalizado, precisa de resolver o problema do crédito malparado.
Estamos a falar na criação de um banco mau?
Ao contrário do que foi dito, o BES não foi separado em BES bom e BES mau. Foi separado em Novo Banco e o BES com relações com o GES [Grupo Espírito Santo]. Mas o Novo Banco tem novamente que ser separado em Novo Banco bom e Novo Banco mau. E tanto que tem que já foi separado: há uma unidade chamada side bank do Novo Banco, que não estão separados financeiramente. Todos os bancos têm bancos maus dentro de si. Todos têm um stock elevado de crédito malparado. Esse é o problema a enfrentar. Vamos com quatro anos de atraso, devíamos tê-lo feito na altura do programa de ajustamento. Não foi feito porque se entendia que era uma reforma muito ambiciosa que podia custar dinheiro. O que eu sei é que pode-se ter gasto menos dinheiro no curto prazo, mas foi-se gastando muito dinheiro ao longo dos anos e não se resolveu o problema. As pessoas que dizem que a nacionalização tem riscos e custos parecem pressupor que há uma alternativa qualquer sem riscos e custos! Como é óbvio, essa alternativa é uma quimera. Mas, tendo em conta que algum custo há-de haver, utilizemo-lo na solução do problema e não em apenas subsidiar uma empresa que provavelmente vai fazer muito mal ao banco.
E o governo já está convencido de que a solução é nacionalizar?
Acho que o governo já definiu quais são as suas linhas vermelhas. O governo continua empenhado na venda mas não numa venda a qualquer custo. Numa venda aceitável. Até agora, as propostas não o parecem ser. Se surgir alguma que seja, a conversa será outra.
O Novo Banco nacionalizado podia ficar na esfera da Caixa Geral de Depósitos?
Não, isso não me parece possível.
Por causa da quota de mercado?
E porque implicaria uma reestruturação profunda de dois bancos, com despedimentos. São bancos distintos, ambos com elevado valor para o país.
Como é que isto se negoceia em Bruxelas, sendo que foi tão difícil negociar a recapitalização da Caixa?
O Estado português está vinculado a um compromisso de Bruxelas de apresentar uma solução sistémica para os NPL [non performing loans, crédito malparado]. Como eu abordaria isto em Bruxelas? Em primeiro lugar, Bruxelas reconhece que este é um problema que não foi resolvido no passado e que carece de resolução. Se tivermos uma estratégia coerente, que faça sentido, que permita resolver o problema e no qual o Novo Banco, os NPL, os problemas do setor financeiro surjam como um todo, numa negociação em pacote, não me parece que faça muito sentido à Comissão Europeia colocar entraves a uma reforma estrutural para um problema que eles próprios consideram precisar de uma reforma estrutural. Obviamente que qualquer negociação com Bruxelas é mais complexa do que a não negociação mas se, para não negociar, tivermos que fazer um mau negócio prefiro correr o risco da negociação. Se o resultado for positivo e Bruxelas o aprovar, teremos uma reforma estrutural que Bruxelas considera ser necessária. E o BCE também.
Mas o governo ainda está a trabalhar no plano A, o da venda. E segundo já noticiámos, o Banco de Portugal está preocupado com os desejos de nacionalização do PS…
E nós estamos preocupados com o que foi dito durante dois anos sobre o Novo Banco, que era um banco que estava limpo, rentável e bom. Preocupava-me primeiro com o problema criado do que com aqueles que estão a tentar resolver o problema.
Mas não se tem que tomar uma posição rapidamente?
Tem que se tomar uma decisão rapidamente sobre se vale a pena ter uma estratégia global que enfrente os problemas da banca e que se enquadre o problema do Novo Banco nisto. Acho que é preciso uma resposta urgente.
Portanto, as Finanças têm que responder rapidamente se aceitam a nacionalização e se vai trabalhar para ela?
O Ministério das Finanças tem que concluir a negociação sempre percebendo o que é melhor para os contribuintes. E perante uma proposta concreta, tomar uma decisão. Já tomou uma: perante a proposta que foi apresentada há três semanas, disse não. Deu espaço para o comprador reformular a proposta. Se as propostas continuarem a ser inaceitáveis, o ministro das Finanças já disse que nessa situação não vende. E como também já disse que não liquida, o que me parece bem, penso que só resta a nacionalização. Esperemos que esta situação se resolva rapidamente. Enquanto houver a possibilidade de uma proposta melhor, compreendo que o governo continue apostado nessa via. O que eu acho é que essa proposta nunca será suficientemente boa para que valha a pena não nacionalizar o banco.
Está preocupado com os juros da dívida acima de 4%?
Estou e não estou. Estou preocupado porque é obviamente uma situação preocupante. Mas, por outro lado, é evidente que esses juros não decorrem de políticas do governo. Há uma componente externa, o Trump, a subida da inflação. E depois há duas exclusivamente portuguesas e que explicam porque é que o nosso país é mais frágil do que os outros e será sempre mais penalizado do que os outros. É a situação da banca e o elevado endividamento do país. Nem a situação da banca nem o elevado endividamento foram criados por este governo. Nós estamos a tentar resolver um dos problemas que causa a subida dos juros. Temos o défice mais baixo da democracia, vamos sair do procedimento por défice excessivo. O que este governo faz é dar sinais de que esse problema está a ter as respostas necessárias. Não havendo uma relação entre as políticas do governo e os juros há uma coisa que eu sei: não há nenhuma inversão de rumo que o governo deva fazer. A dinâmica é de aceleração do crescimento. Toda a dinâmica da dívida desde o início da crise teve um só responsável pela evolução dos juros, que foi o BCE. Os nossos juros em 2012 começaram a baixar com a intervenção do BCE, que salvou a Espanha e a Itália da bancarrota. É uma ilusão pensar que se houver um problema com a dívida portuguesa que alguém que não o BCE possa fazer alguma coisa. Será um equívoco cair no erro de 2009, 2010, de achar que se cortarmos os salários poderemos fazer baixar os juros. Reconhecendo o enorme problema que isto é, mesmo que queiram culpar o governo e dizer que a causa é nacional vão ter que ser um pouco mais criativos porque as desculpas vão ser difíceis de arranjar.
Acha que o BCE vai conseguir fazer uma política para contrariar a subida?
Há uma coisa que eu sei: o BCE e a Comissão Europeia disseram ao mundo que as regras europeias garantiam a confiança dos mercados. Portugal está a cumprir. E é quando está a cumprir que é penalizado? Alguém tem que contar outra história. Se Bruxelas diz que quem cumpre as regras europeias não é penalizado, o que se demonstra agora com Portugal é que nada disso é verdade.