Ojulgamento que leva a tribunal o ex-ministro da Administração Interna Miguel Macedo por suspeitas de atribuição ilegal de vistos a cidadãos estrangeiros arrancou esta semana com um conselho pouco comum do procurador José Espada Niza e com a garantia de que «se propõe comprovar todos os factos relevantes e essenciais que constam do despacho de pronúncia». O magistrado do Ministério Público lembrou aos 21 arguidos que «qualquer um que venha a colaborar terá de ser devidamente compensado com o direito premial».
No chamado ‘caso Vistos Gold’ estão a ser julgadas 17 pessoas e quatro empresas, que respondem por crimes de corrupção ativa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato de uso, abuso de poder e tráfico de influência.
Além do antigo governante social-democrata, foram também acusados o ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), António Figueiredo, o ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos, e a antiga secretária-geral do Ministério da Justiça Maria Antónia Anes.
Garrafas e envelopes
O primeiro a falar foi Manuel Jarmela Palos. O ex-diretor do SEF declarou a sua inocência, admitindo, no entanto, ter recebido várias «solicitações» para acompanhar processos de atribuição de vistos gold. «A partir do momento em que transmitia as informações [aos serviços competentes], desligava-me das situações», afirmou Palos, reforçando que a relação que manteve com António Figueiredo era estritamente «institucional».
Sobre os presentes alegadamente oferecidos pelo casal chinês Zhu – duas garrafas de vinho -, Palos disse nunca as ter visto e que, caso existam, estarão nas instalações do SEF, onde se encontram todas as ofertas institucionais. «Custa-me [a ideia de] trocar uma vida de trabalho por duas garrafas», defendeu.
Para além destas prendas, a acusação confrontou o antigo responsável com a alegada oferta feita por Figueiredo de dois envelopes com 100 euros para as secretárias de Palos comprarem perfumes. O ex-diretor do SEF disse que devolveu o dinheiro ao antigo presidente do IRN, reprovando a atitude do responsável.
Palos falou ainda sobre a relação com Miguel Macedo e o facto de ter telefonado ao então ministro da Administração Interna no dia em que começaram a sair notícias sobre a ‘Operação Labirinto’: «Devo ter marcado o seu número de telemóvel sem querer. Não foi minha intenção ligar ao ministro [da Administração Interna], mas acabámos por falar [sobre as notícias do dia]», justificou.
O caso
Apenas Palos e o antigo inspetor do IRN, Abílio Silva, prestaram declarações até agora. À saída do tribunal, o advogado de António Figueiredo, Rogério Alves, afirmou que o seu cliente «não praticou os crimes que lhe são imputados», enquanto Paulo Cunha e Sá, que representa os três arguidos chineses, disse que há no processo escutas de conversas em chinês com tradução pouco rigorosa.
«As declarações [em julgamento] terão de ter tradução simultânea. Temos de ter muito cuidado nisso, porque o peso e o sentido das palavras é muito relevante. Há escutas [telefónicas] com conversas em chinês com traduções pouco rigorosas», defendeu.
Já Miguel Macedo disse que apenas se irá pronunciar sobre o assunto na altura devida.
De acordo com a acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, o ex-ministro terá aproveitado o seu lugar para favorecer empresários chineses. Tal auxílio traduziu-se inclusivamente em pedidos de agilização de processos feitos ao SEF.
O MP defende que o ex-ministro mantinha em simultâneo relações de amizade e grande proximidade com os arguidos chineses, que tinham negócios ilegais, e com António Figueiredo, que era peça chave em todo o esquema.
A investigação considera ainda que Macedo acabou assim por tirar proveito da atribuição de vistos gold concedidos de forma irregular.
Sobre Manuel Palos, os investigadores descobriram que terá recebido duas garrafas de vinho e que acatava algumas ordens até por receio de perder o seu cargo.
No despacho de acusação, os quatro procuradores que assinam o documento arrasam a conduta dos arguidos. Sobretudo a de Miguel Macedo. Afirmam, por exemplo, que a conduta do ex-ministro e de António Figueiredo foi «inadmissível».
‘Falta de honorabilidade’
Além de considerarem que a teia de influências montada representa «o muito grave e acentuado desrespeito pelos deveres funcionais e pelos padrões ético-profissionais de conduta», acrescentam que este tipo de atuação, atribuído a Miguel Macedo e a António Figueiredo, demonstra «falta de competência e honorabilidade profissionais».
Ainda na perspetiva da acusação – que pede a condenação de Figueiredo, Xiaodong e mulher a pagarem cerca de 750 mil euros ao Estado – , houve «uma inadmissível promiscuidade de funções que privilegiava interesses essencialmente privados em detrimento manifesto de interesses públicos».