O corpo é a fronteira primordial, a régua com a qual saímos a medir a altura do mundo. Interessado nas relações entre público e privado, entre espectador e artista, Vito Acconci sentiu esse apelo de levar à frente o corpo, usá-lo como o instrumento central de uma arte que cruzava linhas e entrava no confronto. Questionando os limites, as experiências que fizeram dele uma influência decisiva a partir da década de 60 na cena artística nova iorquina – um pioneiro da performance, da body art e da video art –, são a expressão de um grande desassossego, e a marca de um homem que recusou a arte estanque, aquela que não se insurge.
Acconci morreu na passada quinta-feira, aos 77 anos. A mulher deu a notícia no dia seguinte. A morte pôs fim a uma doença prolongada, e os últimos meses foram vividos em agonia, como se até a despedida lhe exigisse uma performance dolorosa, violenta. Os obituários firmaram a lista das muitas áreas que atravessou no seu percurso radical: poeta, artista plástico, arquitecto e designer… Começou com a paixão pela literatura, não o encanto pelo seu prestígio clássico, arcaizante, não lhe interessava a frieza dos textos eternos, antes foi atraído pelo lado da transgressão. Depois de ter publicado livros de poesia, desistiu. A escrita não lhe dava margem para um assalto, faltava a presença do corpo, o vigor imediato e actuante, o risco e a imprevisibilidade.
As suas viragens eram súbitas, atirava-se sem buscar conciliar as coisas. Às artes plásticas chegou depois de se confrontar com a pintura pop de Jasper Johns. Numa entrevista ao The Art Newspaper, em 2002, diz que essa descoberta o fez «reconhecer que não há uma coisa chamada ‘criação’, só organização e reorganização, desorganização». A sua obra opunha-se, por natureza, aos princípios de validação, antes exigindo um sentido de irreprimível metamorfose. A arte e o crime não estavam muito longe nos seus meios, apenas nos seus fins. Como nota o The New York Times, «algumas das suas performances podiam tê-lo levado à cadeia, contudo Acconci parecia possuir também os instintos de um ladrão de carros». Ao usar como musa o modo alheado como habitamos o espaço urbano, este descendente de italianos nascido no Bronx, em 1969, na performance que ficou conhecida como Following Piece, ao longo de um mês foi documentando uma experiência de assédio aos transeuntes em Manhattan, escolhendo uma pessoa ao acaso nas ruas e seguindo-a até que esta se refugiasse num espaço privado, cujo acesso lhe fosse negado.
Acconci não defendia este trabalho como mera provocação, não perseguia para atazanar, mas como quem se sente perdido e se cola a alguém na tentativa de descobrir uma direcção. De acordo com o New York Times, disse ao músico Thurston Moore que foi uma forma «de deixar a posição do escritor sentado à secretária e cair nas ruas da cidade». Rematando: «Era como se estivesse a rezar para que as pessoas me levassem a algum sítio ao qual eu não sabia como ir dar sozinho».
Seedbed, de 1972, a performance que fez dele uma figura infame, aquela que deixou na sombra tantas outras audácias, atribuindo-lhe a reputação de um chalado com sede de escândalo, foi a tal em que, oculto debaixo do arco de um chão falso, se dirigia através de um microfone às pessoas que entravam na galeria Sonnabend no Soho, ficando por cima dele, e, enquanto isso, masturbava-se. Entre o êxtase e a obscenidade, Acconci defendeu esta performance como uma forma de criar um laço, ainda que constrangedor, entre espectador e artista.
Houve outras, sempre tentando violar essa fronteira entre as identidades que assumimos no quotidiano e aquela que vestimos para passear, ir aos museus, assistir a performances ou nos dispormos ao confronto com alguma peça de arte contida. Foi pelo lado da incontenção, da incontinência, do trespasse e da desordem que Acconci marcou precedentes, abriu caminhos quando era mais difícil, enfrentando sempre o risco de ser declarado um bandalho, um louco. A medida do seu sucesso tira-se pelo facto de ele ter assumido todos os perigos em relação a manifestações que hoje são toleradas como actos tão desafiantes ou banais como performances circenses.
E se é reconhecido hoje como pai na arte que sai da sua reserva e dos locais sob quarentena onde o seu campo de irradiação se faz sentir, o facto é que não ficou para recolher os louros. Muitas das suas acções caíram no esquecimento, e foi graças a uma raríssima retrospectiva que o MoMA PS1 lhe dedicou no ano passado que o resultados do teste de paternidade na arte contemporânea vieram a lume, com o New York Times a fazer o seu perfil, onde lhe reconhecia o estatuto de lenda: «O impacto genético das suas performances, fotografias e trabalhos em vídeo de um período que dura apenas oito anos – 1968 a 1976 – é tão extenso que é difícil de traçar.»
Depois deixou-se de performances, acabou por criar um atelier de arquitectura no final dos 80, deixando o problema da habitação do espaço para os desafios de defini-lo. Acabou assim por causar algum embaraço entre os que o admiravam, e ocupou-se de projectos, como parques públicos, espaços de espera em aeroportos, uma ilha artificial na Áustria… Manteve a sua abordagem pouco ortodoxa, indiferente à consideração daquele público que chega sempre tarde, que já não vê o fogo, mas adora recolher cinzas e fazer reconstituições.
Entre todas as distinções que lhe foram feitas na hora da morte, merece destaque a da crítica de arte do El País, Ángela Molina. «Há desaparições de artistas que nos obrigam a pensar. A de Vito Acconci devia atirar para o esquecimento todos esses performers e artivistas a quem falta a coragem necessária para abandonar a popularidade e pedir perdão por se terem tornado milionários à custa da passividade da crítica e da inoperância de alguns comissários e dealers. A última Marina Abramovic ou o chinês Ai Weiwei são herdeiros indignos deste pioneiro do body art norte-americano, pois converteram esta prática artística em algo de sedutor: um espectáculo de entretenimento».