Guardava no braço a memória do Holocausto. Aquele número que os nazis lhe impuseram como tatuagem, e muitos sobreviventes apagaram, manteve-o como marca de sobrevivência, como forma de demonstrar que a vida vale a pena ser vivida, porque mesmo uma família judia não praticante pode acabar um dia num campo de concentração.
«Tenho a sensação que no dia em que morrer será na shoah [Holocausto] que estarei a pensar», disse um dia, lembrando esses longos meses, aos 16 anos, passados em Auschwitz-Birkenau.
Esse dia chegou agora, aos 89 anos, divulgou a família ontem – «A minha mãe morreu esta manhã na sua casa [de Paris]. Ia fazer 90 anos a 13 de julho», divulgou o seu filho advogado Jean Veil. Para trás ficava uma longa vida a sublinhar quotidianamente que a sua sobrevivência não tinha sido em vão, não havia sido desperdiçada.
«Quando se sobrevive ao maior drama do século XX, não se vê a vida da mesma maneira. Os filhos, o trabalho, a política: ela fez tudo como se desafiasse a morte. Ela queria ser exemplar aos olhos dos seus filhos, dos seus mais próximos e, sobretudo, de todos aqueles que perdeu», afirmou Françoise de Panafieu, antiga deputada francesa, citada pelo Le Monde.
Uma existência que a levou ao combate pelos direitos das mulheres – foi ela que introduziu, em 1974, quando era ministra da Saúde de França, o projeto lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez – e pela construção da Europa – entre 1979 e 1982 foi a primeira presidente eleita do Parlamento Europeu.
A questão do aborto, na França conservadora dos anos 1970, valeu-lhe o insulto de muitos e mesmo silêncios gelados por parte de amigos. A determinada altura do seu discurso de defesa da legislação no Parlamento francês dizia: «Quero antes de mais partilhar uma convicção como mulher, peço desculpa por o fazer diante desta Assembleia quase exclusivamente composta por homens, nenhuma mulher recorre ao aborto com alegria no coração». O mesmo discurso que terminava assim: «Esta juventude é corajosa, capaz de entusiasmos e sacrifícios como os outros. Sejamos capazes de confiar nela para conservar o valor supremo da vida».
Veil aguentou o embate, no parlamento e na rua, o que lhe valeu ser considerada como a ‘revelação do ano’ pelo Le Nouvel Observateur. Foi ministra da Saúde durante cinco anos. Nos anos 1990, a convite do primeiro-ministro Edouard Balladur, voltaria a ser membro do Governo, dessa vez como ministra de Estado e dos Assuntos Sociais entre 1993 e 1995.
Entre esses dois momentos, Veil foi eleita para o Parlamento Europeu como deputada e Valéry Giscard d’Estaing – o mesmo que a havia convidado para o Ministério da Saúde mesmo ela não tendo qualquer experiência na área – resolveu fazer dela um símbolo para a construção europeia, lançando a sua candidatura à presidência com esta justificação: «Que uma antiga deportada aceda à presidência do novo parlamento de Estrasburgo parece-me um bom augúrio», afirmou Giscard d’Estaing.
O Parlamento dava os seus primeiros passos, a construção europeia era vista com entusiasmo e, de acordo com Jacques Delors (que seria presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995), citado pelo Le Monde, «Simone Veil demonstrou, durante a sua presidência, uma qualidade rara: o discernimento. Logo no seu discurso de tomada de posse, sublinhou as dificuldades da construção europeia».
Dificuldades, sim, mas não a ponto de desistir, que ela nunca foi de o fazer: «Sabe, apesar de um destino difícil, eu sou, eu continuo a ser otimista», afirmava em 1995, citada pelo Libération. «Acredito que há sempre um propósito pelo qual lutar. E diz-se que a humanidade é mais suportável do que era».
Membro do Conselho Constitucional de França (a mais alta autoridade constitucional do país) de 1998 a 2007, começou nesse ano a afastar-se da vida pública, tendo também saído da presidência da Fundação para a memória da Shoah, criada em 2000, destinada a evitar que se esqueça o Holocausto.
«Uma imagem ou antes várias imagens de Simone Veil. Os seus olhos, deslumbrantes, azuis como o céu. Os seus ataques de cólera, tão brutais como inesperados. A sua emoção na assembleia, quando os deputados a injuriavam aquando da lei sobre a IVG em 1974», escreve Eric Favereau no Libération.
Nascida em 1927 em Nice, numa família judia não praticante que seria quase toda morta no Holocausto – só ela e as irmã Madeleine e Denise sobreviveram -, Simone Veil «atravessou a história», como a ela se referiu o ex-Presidente francês François Hollande: «A França perdeu uma das suas grandes consciências».
Numa entrevista à France Culture em 2010 garantia: «Não tenho vontade de chorar com os livros, já chorei demasiado na minha vida».