Ao café de Cristina – ponto de paragem quase obrigatório para quem vem a Pedrógão – não falta quem vá perguntar pela estrada da morte. “A resposta é sempre a mesma: aqui não há nenhuma estrada com esse nome”, assim como também se recusa a dar indicações quando querem saber que caminho tomar para ir ter “àquela aldeia que na televisão dizem que morreu muita gente”.
Os cenários de destruição servem agora de atrativo turístico a uma terra que faz tudo para esquecer aquela semana de junho em que o fogo lhes roubou o verde, o mesmo que agora tenta despontar entre as árvores pintadas de negro. “É com o que me está a crescer na horta que me vou entretendo”, conta Isabel. Há um mês, quando entrámos no quintal de sua casa, tivemos de fintar uma fila de familiares até chegar a uma mãe que se recusava a aceitar a morte do filho Diogo, que há dois dias tinha saído para ir buscar ajuda sem nunca mais dar notícias. “Ele pode estar no hospital, não pode?”, perguntava, sem que uma resposta chegasse, a não ser sob a forma dos olhos baixos dos familiares, como a que fugir ao confronto com a realidade. Agora, Isabel conforta-se no filho mais novo, Rafael, e tenta pensar o menos possível naquele sábado, 17 de junho. “Mas nem sempre dá”, admite, “e quando não dá vou chorar para longe, para ninguém me ver.”
Isabel foi uma das poucas sobreviventes de uma aldeia que, de 30 habitantes, perdeu 11. São estes números que fazem com que Nodeirinho já não seja o mesmo aos olhos de Marta da Conceição, que em 84 anos de vida nunca viram nada assim. “É uma tristeza muito grande ver tão poucochinha gente aqui”, lamenta, sob o olhar atento do marido, a sua única companhia nas horas em que a filha, que na noite do incêndio salvou mais de uma dezena de pessoas enfiando-as no tanque da aldeia, está no trabalho.
Aqueles dias em Pedrógão contam-se destas histórias de heróis anónimos, sem fardas nem mangueiras especiais. Heróis como os vizinhos de Julie e Cris que, sem que fosse preciso pedir, fizeram de tudo para que o casal inglês não perdesse a casa que fez sua desde que escolheu a aldeia de Mosteiro para viver. “Os portugueses são os melhores vizinhos que se pode pedir”, diziam dias depois da tragédia e continuam a dizer ainda hoje. Mas, agora, a boa vontade já não chega para trazer ânimo a quem ainda espera pelo dia de voltar para casa. “O teto está todo preto e as janelas ainda estão destruídas”, explica Cris. Pediram dinheiro emprestado para as obras e, entretanto, vivem em casa de amigos. “Os portugueses são maravilhosos, mas muito lentos nisto das obras. O que nos vale é pensar que em Inglaterra custariam o dobro”, brinca, enquanto enrola mais um cigarro.
O tempo passa mais devagar agora que Julie dispensa as caminhadas diárias – “evito olhar para esta paisagem queimada”, conta – e adia ao máximo a hora de dormir, por saber que com o descanso chegam também os pesadelos. “Prefiro ler. São os livros que me tiram daqui”, admite. Mas supomos que nem sempre são o suficiente. Ao lado do tabaco de enrolar e da pilha de livros está aberta uma caixa de antidepressivos.
Os heróis
Aos heróis sem farda juntam–se os bombeiros, aqueles que, apesar da experiência em lidar com situações nas quais ninguém quer estar, encaram Pedrógão como uma coisa sem comparação. E é por isso que os olhos de Sérgio ainda se enchem de lágrimas quando volta às primeiras horas daquele incêndio.
Depois de tirar oito pessoas do fogo da aldeia de Mosteiro e de as enfiar dentro da carrinha dos bombeiros – “que normalmente dá para cinco, e muito apertados” –, rumou à estrada 236, aquela onde morreram 47 pessoas. “O fumo era de tal ordem que eu não via mais do que isto”, conta o bombeiro, com a mão esticada em frente ao nariz. “Os carros ardiam, mas nunca imaginei que lá dentro estivesse gente”, admite. Só se apercebeu “do tamanho da desgraça” quando começou a cruzar-se com sobreviventes que deambulavam sem rumo, entre gritos de dor pela pele queimada e por saberem quem tinham deixado para trás. “Meti quem pude dentro do carro e saí de lá. O calor era tal que só o fumo já queimava”, explica.
Manuel Pereira, bombeiro há 44 anos, acompanhou Sérgio em parte deste percurso. “Entrei ao serviço no sábado e só saí no sábado seguinte”, conta, apontando os litros de Redbull bebidos como a razão lógica para se manter acordado durante tanto tempo.
Agora, as coisas estão mais calmas e Sérgio e Manuel puderam fazer uma pausa para almoçar, num quartel que deixou de ser albergue para as doações de comida e já voltou a ter espaço para os carros e camiões que puderam, finalmente, fazer uma pausa na marcha. É por isso que na carrinha de bombeiros que Sérgio conduz já não há sacos com sandes e barritas energéticas, nem dezenas de garrafas de água vazias. “Mas tem outras coisas”, salienta, apontando para o banco de trás, onde guarda alguns peluches e brinquedos. “Estes vou dando sempre que vejo uma criança mais triste.”
A Ajuda
Os donativos que chegavam de todo o país tiveram de sair do quartel para duas tendas montadas no centro de Pedrógão.
Se cá fora estão 40 graus, dentro destes toldos de plástico branco facilmente se chega aos 40 e muitos. Talvez por isso sejam apenas duas as voluntárias que no dia da visita do i tentavam domar uma autêntica avalanche de sacos e caixotes. “Chegam de todo o lado. Até de Itália já veio um camião”, refere um funcionário da câmara, destacado nas últimas semanas para o serviço de distribuição às aldeias.
A divisão possível faz-se de montes com vários metros de altura etiquetados com “mulher”, “criança”, “homem”, “toalhas” e “lençóis”. Uma das voluntárias vira para nós um dos exemplos de quem, claramente, usa a solidariedade para limpar os armários de casa. “Este pijama está sujo, está roto. As pessoas, às vezes, perdem a noção.”
Umas ruas acima, na Santa Casa da Misericórdia da vila, estão disponíveis os produtos de higiene, brinquedos e comida. Desde que montaram aquela espécie de supermercado sem preços já receberam mais de 300 famílias que procuram aqui aquilo que lhes foi tirado pelo incêndio.
Sofia Pires está encarregada de preencher as fichas que dão conta das famílias que chegam para ir buscar mantimentos. “Há gente que vem cá muitas vezes, talvez por medo de ficar sem mantimentos para o tempo frio que vai acabar por chegar”, conta, ciente da realidade rural, na qual muita gente vive do que a terra dá. E uma terra queimada de pouco serve para isso. O mesmo funcionário que há pouco nos dava conta das horas extra que tem feito a receber as doações é o mesmo que critica o processo. “Enchem as pessoas de coisas, quando a primeira coisa a fazer era dar–lhes uma casinha nova”, admite.
O luto
Um mês depois, e mesmo sem fumo, Pedrógão continua cinzento.
Os funcionários da câmara trocam as placas de indicação das freguesias que foram queimadas pelo fogo, mas para chegar a Nodeirinho só mesmo com ajuda de GPS. Veem-se equipas a montar novos cabos de eletricidade e de comunicações, mas nas aldeias da Graça e de Vila Facaia, desde dia 17 de junho que não há internet, telefone ou televisão. Os donativos continuam a chegar em camiões e não há ninguém com quem o i fale que não agradeça a solidariedade. Mas continua a haver um senhor que, numa das aldeias mais afetadas, só soubemos depois, vive agora no anexo da casa destruída, nuns poucos metros quadrados onde tem apenas um frigorífico e uma cama.
Os que sobreviveram agradecem a sorte, mas nem por isso os mortos são esquecidos. E mesmo depois de o i confirmar junto do Instituto de Medicina Legal que foram 64 os corpos autopsiados, é à boca pequena que se fala em mais de uma centena de mortes. “A gente que cá vive é que sabe”, ouvimos de quem sobe de tom numa conversa de café. “É claro que há mais gente morta, mas isso agora só depois das eleições”, há quem responda.
Esta incerteza sobre a morte e a certeza de que o que sobreviveu leva tempo a sarar faz com que os ânimos de Pedrógão não sejam os de outros tempos. “Suicídios ainda não houve, mas quando começar o outono, não duvido que aconteça”, admite Cristina, a dona do tal café que serve de ponto de encontro à vila.
Entre sumos e tostas mistas sobrepõem–se histórias e quase parece que se luta para ver quem tem a mais triste para contar. Só a voz calma de Luís faz parar este murmúrio. Pousa o jornal ao lado da pilha de livros que traz debaixo do braço e usa a sua experiência para antever o que aí vem. “Cada pessoa tem o seu tempo”, começa. As vozes baixam, até que só ele tenha direito a falar. “Quando a minha filha morreu – e olhe que foi de doença –, demorei um ano a aceitar. Já a minha mulher levou dez anos a perceber que ela nunca mais estaria connosco”, continua. “Quando esta gente se aperceber que os irmãos, os pais ou os filhos morreram, cai-lhes outro fogo em cima.”