De histórias contadas por esta ordem tem havido poucas no cinema português mas isso não foi problema para Pedro Cabeleira. Como não foi a falta de orçamento para um filme que conseguiu fazer de tempo, o seu e o dos outros. Amigos, quase sempre, colegas do curso que acabava de terminar na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, para mergulhar naquilo que veio a chamar de verão danado, que é o que vem a seguir à escola, hiato entre o que a vida sempre foi e o que há de passar a ser, quando for. Definição para um período que foi da sua vida e para o que acabou por ser o filme com que saiu dele.
Foi então por aí que no verão de 2013 começou a dar forma à ideia deste seu primeiro filme que, contrariando aquele que é o percurso habitual de um cineasta ainda a fazer-se, escolheu fazer em formato longo. “Tinha acabado de sair da escola e queria fazer um filme. Não uma coisa que me desse credibilidade como realizador, mas algo que me permitisse dizer. se daqui a uns anos estivesse a fazer outra coisa qualquer, que pelo menos tinha feito um filme”, conta-nos numa conversa combinada Videolotion, produtora em que trabalha desde esse tempo que chegou a “Verão Danado” como associada à Optec Filmes, produtora de Pedro Costa, que antes de João Pedro Rodrigues tinha sido o último realizador premiado em Locarno, com “Cavalo Dinheiro”, em 2014.
Um filme para poder repetir para si próprio que era realizador, que podia ser. “Havia essa coisa de querer ficar tranquilo comigo mesmo, pensar que se calhar daí a quatro anos podia até ter que voltar para o Entroncamento [onde nasceu] ou estar a trabalhar num café, mas que pelo menos tinha feito um filme.” E a ser um filme que fosse uma longa, não uma curta. “São formatos diferentes. Sinto que a curta é um formato que não consigo desenhar tão bem, por isso não me interessava tanto”, explica. Essa espécie de cordão umbilical que o mantinha ligado à escola era a segurança e a certeza de que era aquele o momento certo. “Sabia que naquela altura ia conseguir o mínimo de condições para fazer um filme pela ligação que ainda tinha à escola e esse foi o grande ponto de partida.”
Na escola encontrou a boa vontade para reunir o “material antigo” de que precisava para o filme, encontrou os atores – à volta de 160 ao longo de duas horas que estiveram para ser mais -, alguns deles amigos na verdade. Como toda a equipa técnica, colegas que como ele “tinham acabado a escola há pouco tempo e então ainda podiam ajudar”. Leonor Teles, por exemplo, é diretora de fotografia de “Verão Danado”, que com todas as fragilidades de produção acabou por ser rodado em 39 dias em Lisboa mais quatro no Entroncamento, com os avós de Pedro, os únicos não-atores do filme, mas ao longo de sete meses, a partir do verão de 2014.
“Filmava por blocos. Concentrava as filmagens no mínimo de dias possível e a seguir passava se calhar umas semanas sem filmar a preparar o bloco seguinte.” Isto para que os dias de rodagem fossem reduzidos aos indispensáveis apenas, explica o realizador que, três anos depois do início da rodagem e aos 25 anos leva ao filme ao Festival de Locarno como única longa portuguesa em competição, na secção Cineastas do Presente, dedicada a primeiras e segundas obras de longa-metragem. O registo quase documental que descobrimos em “Verão Danado” virá também da dificuldade que foi fazê-lo então.
“Na verdade o filme é feito um bocado à documentário, com essa coisa da câmara ao ombro, também porque não havia dinheiro. O facto de o filme não ser muito estanque” – diz ainda referindo-se agora a todo um processo de escrita a partir de ensaios e improvisos com os atores, cena a cena, ao longo de sete meses – “também tem a ver com as fragilidades da produção e a falta de meios. Podia haver um dia em que um ator estava disponível, em que podia ficar sem um projetor, então o filme tinha que ser uma coisa elástica para se adaptar e poder abraçar todas essas fragilidades. Mas houve vezes em que foi isso deu abertura para se criarem outras coisas que não vinham das fragilidades.”
A forma a servir o conteúdo e pelo caminho o processo num filme que não tinha como não ser autobiográfico. “Não é autobriográfico meu porque eu não sou o Chico [o protagonista, interpretado por Pedro Marujo] nem o Chico é um alter-ego, vejo-o um bocado como um amigo, mas é sobre coisas que sentimos e pelas quais passámos. Se nós estávamos a passar por aquilo, muita gente passou também, vai haver sempre coisas em comum”, diz o realizador que quer ir fazer o seu próximo filme ao Entroncamento, onde viveu até se mudar para Lisboa para estudar Cinema. “Essa capacidade de identificação era o objetivo do filme. E o que começo a achar é que criamos acima de tudo identificação com aquilo que nos parece real. Cada vez acho mais que o cinema é para abrir portas para coisas que o resto não abre, é a possibilidade de explorar sensações numa espécie de zona de conforto.” E se era levar-nos para dentro do filme que Pedro Cabeleira queria com “Verão Danado”, então Locarno é mesmo lugar certo para este verão.