Steven Forti. “Os independentistas têm mais vidas que um gato”

A crise em Espanha abriu espaço a novas utopias, e o nacionalismo catalão aproveitou esse espaço vazio para se afirmar, diz coordenador de estudo sobre o conflito catalão

O investigador e professor associado da Universidade Autónoma de Barcelona e  e investigador no Instituto de História Contemporâna da Universidade Nova de Lisboa é coordenador de um dos trabalhos mais completos sobre o conflito Catalão: “El Processo Separatista en Cataluña”, e para ele não está claro que o independentismo tenha sido derrotado por KO.

O chamado Processo independentista é uma rutura com o passado?

Que as pessoas querem uma mudança na Catalunha é evidente. O statu quo não satisfaz a maioria da população catalã. Qual devia ser a solução não é claro. Mas o processo [nome porque é conhecido o rumo à independência empreendido nos últimos anos] é um sintoma disso. Mas nem sempre se pode afirmar que em determinadas alturas, algumas posições mais independentistas signifiquem só isso, ou sobretudo isso. Por exemplo, muitos dos votos na consulta de novembro de 2014 ou até a ida às urnas no referendo de 1 de outubro significam muitas vezes mais uma recusa da política do governo espanhol e das políticas do Partido Popular dirigido por Mariano Rajoy, que uma adesão incondicional às teses independentistas.

Isso não é visível mesmo naqueles que defendem  incondicionalmente a independência. A grande subida dos que defendem a solução de um Estado independente para a Catalunha, de 23% para mais de 48% dá-se sobretudo nos anos da crise económica entre 2011 e 2013, do que com o chumbo do Estatuto em 2010.

Para o independentismo é muito importante o chumbo do Estatuto pelo Tribunal Constitucional, assinala um ponto de viragem na sua relação com Madrid, mas essa não é a única razão, e não é a mais importante que levou ao crescimento muito grande do independentismo. Esse aumento abrupto dá-se em 2012 e é devido à crise. São duas coisas que vão juntas, mas que não são a mesma coisa. 

No início dos anos 2000 havia em Barcelona um coletivo chamado Movimento da Resistência Global, que fazia manifestações com centenas de milhares de pessoas contra os processos de globalização financeiros e contra a guerra. Como é que esse tipo de lutas globais foi substituída pela independentista?

Não se converteram todos os manifestantes globais em independentistas. Houve a mobilização de muita gente que nunca tinha saído antes à rua. E para explicar isso é importante analisar o aparecimento de um novo ator social: a Assembleia Nacional Catalã (ANC). Este ator, ainda que te diga que é um movimento de base, construído de cima para baixo, é um movimento construído da cúpula para baixo. Se observarmos este momento complicado para o independentismo, em que aparentemente não sabem para onde se virar – declaram a Independência, é declarado o 155, os dirigentes dizem que vão resistir, aparecem em Bruxelas, começam a dizer que vão participar nas eleições convocadas por Mariano Rajoy –, ainda assim vemos a batuta do ANC.  Mesmo neste momento, de frustração e incerteza, aparece o ANC a dizer como é que se deve gerir e responder. Envia mensagens a dizer: “amanhã às 14 horas vamos para a rua”, e todos aparecem com a camisola devida, e dizem-lhes que se têm que ir às 17 para casa, e toda a gente vai. Não há nenhuma explosão incontrolada. Tudo segue uma disciplina. O mais próximo de uma explosão que houve foi no dia 20 de setembro, quando as pessoas se concentraram, durante a revista da Guarda Civil, em frente ao Departamento de Economia, mas mesmo aí a intervenção dos Jordis [dirigente do ANC e da Òmnium Cultural] foi para controlar a multidão.

Há duas análises que vocês fazem no livro que são, no limite, contraditórias: por um lado, dizem que a contestação da rua do 15 M, contra a austeridade e o chamado regime de 78, se foi transformando na gente que começou a juntar-se pela autodeterminação; por outro lado, garantem que o processo de autodeterminação foi lançado pela burguesia catalã, da Convergência e União, num momento de crise de legitimidade, para se manter no poder e apagar o seu passado.

Para mim são análises que não são contraditórias. É possível dizer as duas coisas. 

Isso não significa tirar do retrato do independentismo a CUP e a ERC?

Não. Até porque o que quer a ERC é transformar-se na nova Convergência e União, governaram com eles e até aprovaram as mesmas políticas de austeridade que os setores mais de direita do nacionalismo levaram à prática. A austeridade, nos últimos cinco anos, não se reverteu. É verdade que não houve os cortes sociais como no tempo do governo de Artur Mas, que foram tão grandes, que ele só conseguiu entrar no parlamento de helicóptero. Esse foi um momento chave. Mas para o processo não há uma só explicação, até porque o movimento independentista é muito heterogéneo e diversificado.

Não se pode dizer que a questão da autodeterminação em Espanha não pode ser uma ameaça para as elites dominantes? Até porque a corrupção na Convergência e União nunca impediu a colaboração com o PP, provavelmente até facilitou uma certa identificação de práticas.

Absolutamente. Mas pensemos num cenário de futurologia: Catalunha torna-se independente. Quem terá a hegemonia política nos dois países? Estamos obviamente no domínio das suposições, mas é possível que isso mantenha a elite que domina Espanha e a elite que domina a Catalunha no poder.

Na Catalunha uma coligação dominada pela ERC e com o apoio da CUP parece ser um pouco diferente do governo PP. Mas é verdade que os nacionalismos periféricos do País Basco e da Catalunha sempre serviram de bons argumentos eleitorais aos governos de Madrid.

É verdade que a Convergência e União perdeu o domínio, mas as suas ideias de governação, nomeadamente as políticas austeritárias, não perderam a hegemonia nos governos autonómicos. Há evidentemente algumas coisas positivas, mas elas são feitas para manter controlados e agradecidos os seus aliados que não são tontos. As políticas de saúde e de educação que aprovaram não mudaram nada. Embora Oriol Junqueras afirme que se aprovou, no ano passado, o orçamento mais social da Catalunha. O que é mentira. Temos que ver que aqui temos muitos elementos: o sistema político espanhol nasceu com a transição em 78. Entrou em crise, sobretudo a partir de 2010, numa crise que começou a ser económica e social e se transformou numa crise institucional e ao mesmo tempo numa crise territorial. O que se passa em Catalunha é uma das ramificações da expressão desta crise. Nós podemos interpretar a questão catalã como um desafio ao regime de 78, até pode ser, mas que possa levar ao fim desse regime, por si, não creio. Estamos a assistir até a uma reconfiguração desse mesmo regime.

Não se pode dizer que há um outro problema que é só se falar do nacionalismos periféricos, como o catalão e o basco, e ninguém identificar como nacionalismo o espanhol? Uma situação que aparece em grande parte dos partidos: desde o PP às conceções nacionais-populares do Podemos.

Não sei se é possível abarcar essas conceções nacionais-populares do Podemos no mesmo saco que o resto. Embora perceba a ideia que ao Podemos as declarações de alguns dos seus deputados na Catalunha ao apoiarem o independentismo, faz-lhe um enorme dano no resto do território espanhol. Daí a necessidade que Pablo Iglesias teve de as corrigir.

A forma como atuou desautorizando e passando por cima do líder do Podemos local, não foi uma espécie de 155 de suspensão da autonomia da direção catalã?

Não acho. É óbvio que a questão da política das alianças nas próximas eleições de 21 de dezembro, e a posição perante o independentismo, tem que ser decidida pelos militantes do Podemos da Catalunha, não pode ser imposta por qualquer direção local, por mais eleita que tenha sido. As conceções nacionais-populares do Podemos dizem uma coisa muito importante, que falta ao discurso do PSOE, Ciudadanos, PP e outros: é que Espanha é um país em crise, não só económica e social, mas como projeto de país. Porquê que até 2007 funcionava muito bem o mito da transição: porque tinha saído da ditadura, entrado na CEE, porque estava a modernizar-se, apesar de ser um crescimento falso, este mito funcionava. Em 2008, antes da crise, é o momento que o PP e PSOE somam a sua maior votação com mais de 70% dos sufrágios. Quando começa a crise tudo isso rebenta. Os partidos que tinham governado a Espanha não souberam construir um novo projeto e mito fundador para um país que estava à deriva. O independentismo o que fez em Catalunha foi apresentar-se como uma utopia disponível num momento em que em Espanha não havia nada. O que Podemos tenta fazer, não sei se o conseguirá, é reconstruir um projeto de país: crítico com o anterior, mas para o futuro. O discurso nacional-popular é imprescindível para isso. Senão como é possível juntar gente tão diversa?

Pode dizer-se que o processo terminou. Que deram tantos tiros nos pés, os independentistas, depois de 1 de outubro, que esta ideia acabou por uns anos?

Não se sabe. Os independentistas têm mais vidas que um gato. Isso depende da construção de um novo discurso para mobilizar as suas bases.

Como isso é possível? Tinham um objetivo de alcançar a independência, fazem um referendo muito forte, em condições muito difíceis, declaram uma independência que não têm forças para manter, agora vão para Bruxelas e aceitam umas eleições marcadas por Rajoy. Como é possível continuar assim?

Há muita gente que continua a acreditar no processo. Para se manter mobilizada é apenas conseguir um novo discurso e objetivos que o façam. É muito difícil fazer previsões. Pode-se dizer que uma fase do processo acabou. O que haverá depois? Não o sei. Há claramente um antes e um depois, a partir deste mês todo de outubro de 2017.

Imagino que nesta nova etapa o discurso seja o utilizar estas eleições para fazer uma segunda volta do referendo. O problema é que o vão fazer em condições de repressão e de judiciarização de grande parte dos seus dirigentes.

Isso foi o que disse o ANC e o Puigdemont sobre as eleições. Não estou convencido que ao governo espanhol interesse fazer umas eleições em que a repressão seja muito visível. Acho aliás, que o governo de Rajoy melhorou muito na sua arte de conduzir a política, depois do 1 de outubro. Até parece que tem conselheiros e especialistas externos a aconselhá-los, de tal maneira deixaram de dar tiros nos pés. Mendes de Vigo , o porta-voz do governo, disse, no sábado, que via com muitos bons olhos que os elementos do governo da Catalunha pudessem apresentar-se às eleições. Daqui a uns dias são presos? Isso pode não os impedir de concorrer. Há demasiadas coisas em aberto.