Esta semana, numa intervenção largamente ignorada (ou muito vagamente referida) pela maioria da imprensa, o Presidente da República agradeceu ao Governo de Passos Coelho ter «sensibilizado» os portugueses para «o saneamento das contas públicas como prioridade nacional».
Foi isso mesmo que acabou de ler, meu caro leitor. Marcelo Rebelo de Sousa, o homem que fez campanha e presidência em nome de um autoproclamado «tempo novo», deu afinal razão a Passos e ao seu tempo enquanto primeiro-ministro.
Ora leia: para Marcelo, o Executivo anterior «deixou, com inquestionável mérito, um trilho aberto e começado a percorrer de drástica redução do défice, sensibilização para a prioridade nacional do saneamento das contas públicas e do crescimento da economia portuguesa». Na conclusão do discurso, apelou até ao PS que mantivesse «o rumo financeiro percorrido» e que reforçasse «a sua interiorização pelos portugueses».
Ainda está a ler, meu caro leitor? Ou já desmaiou de riso?
O chefe de Estado conseguiu, assim, uma irónica proeza. Ao bater palmas ao facto de o PSD ter «sensibilizado» os portugueses para «o saneamento das contas públicas como prioridade nacional», o que Marcelo está a fazer, factualmente, é confirmar a necessidade da austeridade, da contenção orçamental, do rigor financeiro ou de qualquer outro eufemismo propagandístico que lhe prefiram chamar.
Isto, por um lado, chateia quem o sabe há dois anos – que a austeridade é uma necessidade nacional – e vê o Presidente legitimar uma governação que diz (mas não faz) o seu contrário. E, por outro lado, chateia naturalmente quem acreditou que se havia «virado a página da austeridade» nos últimos dois anos, para agora ouvir Marcelo pedir a «interiorização» dessa austeridade.
Tal como Passos enquanto líder da Oposição, Marcelo, neste discurso, falou nos riscos «das bolhas de consumo», das «cativações» e do «investimento público» sacrificado pelo Governo de António Costa, da sua «falta de incentivos à iniciativa privada», do «conjunturalismo», das «manifestações» que minam «a estabilidade política» e também da natural «dúvida» que se formou em políticos e empresários aquando da formação da ‘geringonça’. Pediu, inclusivamente, ao Executivo para «não dar sinais errados ou perturbadores» aos agentes externos.
No fundo, um banho de realismo num microfone que já tresandava a afetos.
Que o tenha escolhido fazer – e dar razão a Passos Coelho – somente depois de Passos sair, diz muito sobre estes últimos dois anos. E ainda mais sobre Marcelo Rebelo de Sousa.
É que o Presidente da República, meu caro leitor, não lhe veio dar novidade nenhuma nem disse qualquer mentira. É mesmo assim: só com austeridade se vira a página da austeridade.