Pombos Lerdos. O manifesto que soa tão alto como um arrulho

Ao actual pardieiro mental a que também a poesia soçobrou, faltava o seu manifesto laxista. “Pombos Lerdos” é uma breve e banal antologia que nos chega como a voz que, do interior do W.C., diz: está gente. Mas está?

Não sei se é lenda rural ou se tem uma ponta de verdade – e é até possível que seja uma dessas tangas que os miúdos do campo esticam quando querem levar para o baile a credulidade dos putos da cidade -, e peço assim a alguém que tenha experiência destas coisas que o confirme, se puder: diz-se que segurando o bico de uma galinha no chão, se se traçar com um pedaço de giz uma linha de uns palmos em frente deste, isto baralha lá com o sistema operativo da galinha, que fica ali, como se catatónica, até que alguém desfaça o feitiço, a liberte do fascínio dessa risca. Se é treta, ainda hoje tem motivos para rir-se aquele que ma contou, tinha eu já sido convertido em puto da cidade. Seja como for, a conversa vem ao caso na medida em que ilustra bem algo que se passou, mais ou menos nesta linha, num dos territórios onde abundam aves, dessas com asas mais de enfeite que outra coisa. A poesia, está claro.

Neste caso, nem preciso foi segurar pelo bico a galinha, bastou riscar a linha. E não foi uma só a responder à chamada, mas uma capoeira (uma dúzia! – número mágico, bem se vê… e se cada uma pusesse um ovo diário, já nos dispensava de ir comprá-los à mercearia por uns tempos, isto enquanto não acabasse tudo na canja). Foi só chamar pelos “pombos lerdos”, que é o jargão que serve para essa outra ave que lembra uma galinha arraçada de rato, e logo 12 se amontoaram nesse fuzué de praça fétida. E se não é espécie que ponha ovos, ainda serve como io-iô distendido para quem se acalma esfarelando o pão e reunindo a pequena assembleia, para ver essa pobre equação de Deus com penas sujas, talvez uma sombra muito distante dos anjos lá em cima.

“Pombos Lerdos” é o título que o editor da Medula, Manuel A. Domingos, foi buscar a um texto por nós publicado nestas páginas, a propósito de uma das raras plaquetes que se distinguem, uma “pérola no cagaçal”, como então se disse. “Ao Largo de Delos”, de Ramiro S. Osório, era uma notável excepção como Domingos fez questão agora de vir confirmar. Seja como for, e se um crítico hoje tem tão poucas alegrias, a respeito de “Pombos Lerdos”, o que se oferece dizer é: esta já não ma tiram.

E tudo o que bastou foi desenhar o tal risco, chamar a atenção para a enorme preponderância que assumiu nos nossos dias este formato em que, entre os dois lados da mesa, se racha a conta de forma tão desigual – com o editor a dar uma de franciscano, enquanto o leitor arca com o custo das veleidades daquele, largando, neste caso, oito euros por míseras trinta páginas. Um folhetinho que agudiza até ao paroxismo a tal “pululante urgência dos poetas que, feitos pombos, gostam de cobrir bem a praça e cagam sem particular denodo, com uma periodicidade que cansa”.

Chegou, no entanto, a hora de me penitenciar. Com a discussão que se seguiu ao anterior artigo, deu para ver nas suas pouco fundas repercussões a confusão que vai na alma de tantos leitores sobre a origem, propósito e até importância da plaquete ou folhetim. Se não fomos lá atrás, foi por abono à inteligência dos editores a quem vimos dirigindo as nossas críticas. E aqui, aproveito para recorrer a uma célebre crónica de Machado de Assis, “O Folhetinista”. Publicada a 30 de setembro de 1859 – garanto que o fosso temporal entre nós e ele se dissipará mal metam o dente na prosa deste nosso contemporâneo -, ali nos fala de “uma das plantas europeias que dificilmente se têm aclimatado entre nós”, notando como, no Brasil, o folhetinista foi uma espécie que já nascera “enfezado, e mesquinho de formas”. O mesmo não poderia transplantar-se para Portugal, mas às vezes algumas gerações é o que basta para os melhores exemplos sufocarem, quando a urgência cede ao facilitismo. E o que era um desejo de lançar um grito, desses que se ouvem em toda a terra, decai e confunde-se com outra queixa de um utente desgostado com o serviço. A crónica é toda ela um prodígio, mas interessa-nos aqui aproveitar a explicação que Machado de Assis dá, lembrando como “debaixo de outro pseudónimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as saliências fisionómicas da moderna criação”.

Agora que estamos deitados de costas tirando macacos e olhando para as estrelas, permitam-me que continue a citar Machado de Assis na sua definição desta ‘nova’ entidade literária: “Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.” Depois, procurem o resto na internet, não é difícil dar com ela, mas por agora temos de desapear-nos com mais esta: “O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.”

No que a nós nos diz respeito, e se não estamos tão deslembrados assim de como se fiavam os dias no tempo do lápis azul, dos modos de asfixia e aperto a que as redacções estavam sujeitas, que o folhetim foi muitas vezes um modo de andar a par do muito ou pouco que se barafustava nos jornais, às vezes uma forma de dar troco, ripostar ou ajustar contas. De um escriba vir pôr preto no branco o que outros não queriam que ninguém ouvisse nem lesse. Estava-se ainda longe desta versão do folhetim-fetiche, das tiragens reduzidíssimas e caras. Antes, era um papel-ao-modo-de-uma-facada sujeito ao gosto e talento dos assinantes, mas sempre feito e distribuído empenhadamente, com ênfase na ideia de que chegasse a muitas mãos, e a não menos consciências, e depressa, para dizer muito alto ao pé de muita gente que o leite do dia chegou azedo.

O mais curioso na degeneração desta entidade literária nos dias de hoje, é que os pequenos editores de poesia, os que mais brandem a espada de papel da sua independência, já nem distribuem o folheto a um preço em conta, antes parecem muito satisfeitos por não chegar a mais do que aqueles poucos pelos quais se desdobra a vaidade dos participantes.

Perfeita ilustração de tudo o que se disse, esta apressada edição que quis visar-nos o que  nos traz? 12 poemas um tanto desgarrados, nem escritos muito a propósito destas questões, e nem sequer obrigando-nos a retirar outras ilações a esta luz. E se dois ou três são ao menos dignos de nota, a maioria não vai além da fútil poeticidade, desse descaso dos lugares tornados tão exasperantemente comuns pelo hálito mais rente ao quotidiano, sem golpe de asa, numa amostra tão irrelevante como indistinta do geral lirismo de gabinete, o colesterol e essas vulgares doenças que hoje entopem as artérias do organismo poético português.

Às tantas, teremos de decidir se o trabalho das pequenas editoras de poesia se distingue ou apenas refocila na lógica que as editoras com melhores competências comerciais impõem. E se, nalguns casos, não se limitam a travestir de orgulho um complexo de inferioridade, propondo genéricos para cada uma das marcas estabelecidas. Afinal, a partir de que momento nos é legítimo encarar estas micro-editoras, cujos catálogos são tão incoerentes que dificilmente se distinguem, de modelos de auto-edição ou, até, de um tráfico de vaidades, de uma militância que não tem mais profundidade que o ego de cada um dos envolvidos? Ou será que desta margem, retalhada em tantas barricadas desavindas, ainda se observa a construção de uma oposição e resistência que determina um outro jogo, uma outra forma de encarar a poesia, e que vê o seu papel como tudo o que seja a invenção de um espaço vital contra a tendência para a “bertrandização” da nossa literatura? É um fenómeno que se vem agravando há algumas décadas, e que Joaquim Manuel Magalhães soube diagnosticar de forma clara: “A esperança do best-seller é o motor editorial das editoras portuguesas mais hegemónicas. E já nem sequer subsistem traços de manter as colecções de prestígio (como as de poesia ou de ensaísmo mais especializado), com que se disfarçava a vergonha de só publicar o mais ou menos oficial ou promocionado.”

Voltando ao folheto, esse pífio manifesto que nos serve aqui mais de desculpa do que propriamente de matéria votiva, já que não rompe com nada, apenas embrulha uma porrada de sintomas desta gripe das aves poéticas. Além dos 12 poemas, é na estendida epígrafe de Rui Costa  – poeta desaparecido em 2012 e forçado a esta conivência com as irritações de um tão irregular editor que, enquanto poeta, não passa de um “caco infantil”, gaguejando uns rabos de frases a uma mãe que não há – que encontramos mais matéria ferina. De resto, e excluindo o poema mais conseguido (“Programa”, de José Ricardo Nunes), embora irrelevante para esta discussão, nos outros sente-se o enfezamento de nascença, e como neles o pó cairá ficando “sempre bem/ a adornar o cliché” (F.S. Hill).

Pretensamente irónicos, dois dos poemas podiam adquirir uma tonalidade algo trágica se tudo isto não fosse apenas mais um exemplo da mirífica montanha de trampa em que o espírito desta triste época se acha soterrado. No final de “O Homem Comovido”, João Alexandre Lopes faz lembrar a célebre frase de G.K. Chesterton, em que este nos diz que não é a imaginação que dá origem à insanidade, mas é precisamente a razão que o faz (“Imagination does not breed insanity. Exactly what does breed insanity is reason”). Veja-se como o poema rasa o desespero, nestes versos de bico no chão: “demasiado dolorosa tamanha degradação em vida,/ demasiado dolorosa a nossa pequenez/ face a tudo e face a nós, demasiado/ pequenos e complicados para a vida.” Só não se percebe é esta torção final. Onde é que a vida não dá conta de tão frívola complicação?

Por fim, há o poema de Henrique Manuel Bento Fialho (“O meu talento é bater palmas”), uma das mais prolíficas e regurgitantes penas da nossa geração, praticante de todos os géneros literários, deixa aqui o seu testemunho enquanto caçador frustrado. Um poema já com uns anos e que provavelmente será das últimas coisas que escreveu em vida, mesmo que viva ainda muitos anos e escreva muito mais. Pelo menos, está entre os que, sem fazer muito pela imaginação, não deixam de registar aquele grau último de conformação, coçando a pele com a mão reduzida aos ossos depois de a carne ter sido dada de comer ao vazio. E, assim, sem sombra de auto-depreciação, espanta todas as ilusões, assumindo aquilo que tanto custa aos mais lerdos dos pombos admitir: “Talvez o meu talento seja andar/ para aqui a fingir que vale a pena.” 

 


"Pombos Lerdos": Ana Bessa Carvalho | F. S. Hill | Henrique Manuel Bento Fialho | João Alexandre Lopes | Jorge Aguiar Oliveira | José Ricardo Nunes | m. parissy | manuel a. domingos | Maria João Lopes Fernandes | Rui Almeida | Rute Mota | Tatiana Faia

Edição: Medula, maio de 2018

Páginas: 26

Preço: €8