Ennio Flaiano, um dramaturgo, dizia que a situação de Itália «é sempre grave mas nunca é séria». O passado prova-o.
Em 1987 já Itália elegia Cicciolina para o Parlamento – a ítalo-húngara que na memória dos leitores não millennials é relacionada com a indústria de filmes para adultos.
Em 1994, Roma era conquistada pelo imperador Berlusconi. Sílvio começou a vida a vender aspiradores e acabou com um império nos media, no futebol e com o mais longo reinado da cena política italiana do pós-guerra. Tinha tudo em muito: poder, relações extraconjugais e processos judiciais.
A primeira gostava de escandalizar. O segundo era o escândalo em pessoa.
Em 2018, o Movimento 5 Estrelas (M5S) e a Liga chegam ao Governo.
As vitórias do populismo não são um fenómeno novo em Itália. A sua aparição nos governos também não. O que é novo no populismo italiano é o seu discurso ostensivamente antieuropeu, por um lado, e o facto de ter deixado o lugar do pendura para assumir os comandos gerais da política, por outro.
Depois de uma via-sacra negocial, o M5S e a Liga prometem um ‘Governo de mudança’.
O contrato social populista firmado por Luigi Di Maio e Matteo Salvini está assente numa ideia muito simples: com o MS5 e a Liga, os italianos vão recuperar o controlo da sua vida, da sua economia e da sua nação.
Os mercados financeiros andam de pantanas e os burocratas de Bruxelas com taquicardias.
As incógnitas pós-eleitorais são mais do que degraus na escadaria da Piazza di Spagna. Quanto tempo vai durar a coligação Di Maio-Salvini? Os mercados darão tréguas? Há risco de contágio político e financeiro aos outros países do euro? Qual é o caminho escolhido pela coligação para repensar o papel de Itália no contexto europeu? Como é que Bruxelas vai lidar com um governo que, para os eurocratas, é a manifestação de um primarismo politico?
Entrámos em águas nunca dantes navegadas em Itália e na Europa. Mas no caos, contudo, confirmaram-se sinais que a classe política europeia não pode ignorar.
1. A governação nacional é um exercício cada vez mais precário. Cada eleição origina parlamentos mais fragmentados e, por inerência, a executivos mais instáveis. Estendem-se os tempos de negociação para a formação de governos e as coligações não são apenas mais frequentes; elas são cada vez mais exercícios de alinhamento cósmico de políticas de planetas ideológicos distintos.
2. Com este cenário nos estados membros, a governação europeia é uma miragem. O próximo conselho europeu, já este mês, era suposto decidir sobre a reforma do euro. Ainda alguém acredita que isso é possível?
3. A Europa continua a não perceber o fenómeno populista. Com o défice médio em 0.89% do PIB, o desemprego em 8.63% e a economia a crescer, a zona euro aparenta estar em boa forma. Ainda assim os populismos continuam a avançar. Há outras razões para além do medo de perder o emprego, da austeridade ou dos imigrantes a definir o voto. Quais? As pessoas estão fartas do sistema, e das suas caras, que teima em manter uma agenda que não lhes diz respeito e não ataca as suas preocupações vulgares.
4. A tese da vacina foi refutada. Depois das vitórias de Donald Trump e do Brexit, as forças liberais em França, na Holanda e na Alemanha foram capazes de reverter a maré de vitórias populistas. A vitória do eurotimismo foi curta. Palmo a palmo, os eurocéticos têm conquistado terreno em todos os cenários eleitorais. A Europa voltou a temer, e a tremer, com o exercício da democracia.
5. Com uma divida pública de 2.3 triliões de euros e uma economia que é dez vezes maior do que a grega, Bruxelas não vai (não pode) tratar Roma da mesma forma que lidou com Atenas. Tal como o Brexit, o Italexit não é impossível. Mas ao contrário do primeiro, o segundo divórcio representará a destruição mútua dos cônjuges.
Voltando a Flaiano, talvez tenhamos chegado ao tempo em que a situação é simultaneamente grave e séria. Não apenas para os italianos, mas para todos os europeus.