Ganhar o ouvido é uma mágica, um modo de comer o coração do outro sem barbarismo. Com a maior das delicadezas. Se tantas vezes foi comparado a Sinatra, Charles Aznavour não chegava sempre pelo mesmo caminho ao encanto. O seu charme continha multidões. Nos seus concertos, se a voz nunca foi a sua grande arma, tinha de encarnar vários papéis, fazer esquecer a fraca figura, o metro e sessenta, crescendo por meio de gestos dramáticos. Enquanto Frank era o cantor que fez filmes, Charles foi o ator que, contrariando a ordem natural das coisas, se tornou no mais improvável herói da canção francesa.
Morreu na madrugada de segunda-feira, aos 94 anos. Tendo regressado dias antes de uma digressão pelo Japão, tinha já agendado para dia 26 deste mês um concerto em Bruxelas. Com uma carreira que se estendeu por oito décadas, Aznavour estava confiante de que iria viver até aos 100. Só não pensava era que continuasse a cantar à volta do mundo para lá dos 90 anos. E se andava pelo mundo esgotando salas de concerto, isto acontecia porque, como notava Miquel Jurado, jornalista do El País, após um concerto em Barcelona em abril, para o seu público era-lhe igual se Aznavour cantava algumas oitavas a baixo do que era suposto ou se lhe faltava o fôlego para chegar às notas mais exigentes. Aquelas pessoas «não estavam a escutar mas a sentir (com tudo o que esta palavra implica) no seu interior o Aznavour das suas recordações, o seu próprio Aznavour».
Enquanto chorava a notícia da morte de um mito, na noite de segunda-feira, a Torre Eiffel iluminou-se em tons de oiro para homenagear Aznavour, e algumas das suas canções, como La Bohème e La Mamma, foram ouvidas por quem atravessava a ponte d’Iéna sobre o Sena. Deixou seis filhos, mas é impossível deitar conta à quantidade de crianças que terão sido concebidas no balanço de uma das suas canções. Escreveu mais de 1400 canções, o homem que nunca esperou pela inspiração, pois acreditava que era o trabalho que se convertia em talento e não o contrário. E se muitas era de amor, a morte de Aznavour terá deixado também muitas viúvas espalhadas pelo mundo. A sueca Ulla Thorsell foi a legítima. Com menos 40 anos que ele, foi a terceira das suas mulheres, e estiveram juntos mais de 50 anos.
Se muito se falou das conquistas no campo do romantismo de um homem que adquiriu o estatuto de lenda viva e de galã depois de ter vendido mais de 100 milhões de álbuns (180 milhões, segundo a sua biografia oficial) em 80 países, agora que desapareceu não basta lembrar como os entendidos nunca deram nada por ele, achando-o demasiado baixo, feio e fracamente dotado também no que toca à voz, como mesmo assim veio a ser considerado, em 1999, numa sondagem da CNN e da revista Time, o entertainer do século, não basta lembrar que o fez depois de ter escrito canções de sucesso para outras lendas da canção francesa como Édith Piaf, Gilbert Bécaud, Léo Ferré e Yves Montand, não basta sequer recordar que ‘Petit Charles’, como era chamado afavelmente pelos franceses, antes de decidir devotar-se primeiramente à música, tinha já uma carreira estabelecida como ator, tendo participado em mais de 60 filmes. É preciso explicar que quando Aznavour começou a escrever canções, nos anos 1940, o sexo ainda era o tipo de coisa que os casais faziam de luz apagada. Como referia Angelique Chrisafis num perfil que fez dele em 2015, se naqueles anos as cantoras podiam uivar pelos seus corações partidos, dos homens esperava-se que não cedessem ao sentimentalismo. Ora, Aznavour não só fez das emoções mais desesperadas uma moeda corrente, como foi derrubando um a um todos os tabus no que respeita à visão que se tinha da masculinidade. Não foi só o sexo e o tesão que foram encarados mais cruamente, mas cantou sobre depressão, preconceitos e até violação.
O seu repertório é não apenas vastíssimo como assinala e, tantas vezes precede, a mudança das consciências, e vai desde a canção What Makes a Man, sobre a história de um travesti gay que, na década de 70 chocou de frente com a moral, a Après l’Amour, que fala de exaustão pós-coital, ou a controversa You’ve Let Yourself Go, em que Aznavour dá voz às queixas de um homem cuja mulher se tornou desmazelada e gorda («olho para ti em puro em absoluto desespero e vejo a tua mãe aí parada», diz num verso).
Se Shanoun Varenagh Aznavourian teve que fazer uns cortes no nome que os pais lhe deram quando veio ao mundo, nunca se esqueceu das suas origens. E se chegou tão longe, tendo abandonado a escola aos 10 anos, depois de ter nascido em Paris a um casal de arménios, que se haviam refugiado em Paris depois do genocídio de 1,5 milhões de arménios, em 1915, nos últimos dias do Império Otomano, Aznavour tornou-se no grande embaixador daquele país pelo mundo depois deste ter deixado de estar sob o domínio soviético, em 1991. Quando era miúdo, tinha visto o pai ser levado à penúria no seu esforço para socorrer e alimentar refugiados arménios no seu restaurante. Numa entrevista ao Expresso, Aznavour recorda-se também de terem escondido judeus em casa, aquando da ocupação nazi. Assim, depois de ter começado a escrever canções para Édith Piaf, quando a sua fama começou a crescer bem para lá de França, contando eventualmente entre os seus amigos com personalidades como Ray Charles, Frank Sinatra, Nina Simone, Charles Trenet, Maurice Chevalier ou Amália, tornou-se o grande porta-voz do povo arménio, angariando tantas vezes fundos para ajudar o país.