Cravos. Cravos. Cravos. E mais cravos. Uma ou outra Chaimite. Aqui e ali, Salgueiro Maia. E novamente cravos. Muitos. E vermelhos, claro. Chavões repetidos até à exaustão. ‘Liberdade!’ é palavra vomitada à razão de três vezes por parágrafo e no que ao sucesso da caça ao like concerne, só encontra rival na expressão ‘25 de Abril, Sempre!’. Em cada foto de perfil – por entre sorrisos bronzeados de colheitas passadas e selfies em momentos de profunda reflexão – há um potencial convidado do saudoso Baptista-Bastos no seu Conversas Secretas, pronto a responder à célebre pergunta «Onde é que você estava no 25 de Abril?». E por incrível que pareça todos têm histórias fantásticas sobre esse dia. Eu não tenho. Não vivi um único dia sob a sombra e o peso da ditadura e as histórias que conheço não são minhas para contar. Nada que impeça a imensa e anárquica comunidade das redes sociais de atulhar murais virtuais com mensagens pseudo-revolucionárias. Antes assim. É sinal de que podem fazê-lo livres de censura. Antes assim? Sim. Antes assim.
Quase em simultâneo com as comemorações do feriado da liberdade eram conhecidas as deliberações dos Conselhos de Disciplina das Federações Portuguesas de Futebol e Patinagem. Quatro jogos de interdição para o João Rocha e três jogos de interdição para o Dragão Caixa, casas das modalidades de pavilhão de Sporting e FC Porto, respetivamente. Antes, entre o final de 2018 e o início de 2019, seis jogos de interdição para o Estádio da Luz (mais um à porta fechada imposto pelo IPDJ), um jogo de interdição para o Municipal de Braga, outro para o Estádio Capital do Móvel e ainda mais um para o D. Afonso Henriques. Nada mais nada menos do que 17 eventos desportivos de alta competição que, no entender dos órgãos que tutelam a disciplina desportiva no nosso país, não deverão ocorrer nos recintos designados para o efeito. Leram bem: 17 eventos desportivos de alta competição. Perante isto, urge questionar de imediato: quantos adeptos foram detidos no seguimento dos episódios que levaram a tão severas medidas de interdição? Dezenas? Centenas? A julgar pela dimensão dos castigos poderíamos ser levados a pensar que na sua génese teriam estado verdadeiras batalhas campais. Não. Apenas tarjas, cânticos, tochas, petardos, alguns comportamentos menos adequados, e sim, num dos casos violência gratuita que pode e deve ser punida de forma exemplar. Mas punindo milhares que nada têm a ver com o comportamento de um? De dois? De meia dúzia ou até de umas dezenas que possam assumir comportamentos censuráveis e menos corretos?
A liberdade não se impõe. Porque a partir do momento em que é imposta deixa de ser liberdade. A liberdade vive-se, conquista-se, merece-se. Todos temos obrigação de a preservar. Todos, sem exceção. E quando um qualquer idiota protagoniza um ato de violência compete a todos nós denunciá-lo sem temer represálias. Porque quando esse idiota o faz, está a pôr em causa a liberdade de todos nós, desmerecendo-a. Há uma palavra para definir aqueles que não merecem a liberdade: chamam-se criminosos. Daí terem de ser encarcerados. Porque quando um idiota faz algo que leva ao encerramento de um recinto desportivo, está a punir milhares que não podem aceder ao espaço e centenas que não podem desempenhar o seu trabalho que, em última instância, vai meter comida na mesa dos seus filhos. Onde está a defesa da liberdade numa interdição de um recinto desportivo? Não há competência nem argúcia para fazer melhor do que isso? Para combater o mal de outra forma? Para legislar com inteligência? Onde está a responsabilização individual de um prevaricador, em detrimento do castigo coletivo de pessoas que nada têm a ver com ele a não ser a cor do cachecol que levam ao pescoço? Mais até do que liberdade, onde está a justiça?
São já 45 os anos passados sobre o nosso 25 de Abril e continuamos a olhar para nós como uma democracia demasiado jovem. Uma «obra inacabada» como lhe chamou, e bem, o nosso ‘Presidente dos Afetos’. De acordo. Mas está na altura de sabermos ser livres no sentido absolutamente lato de liberdade que implica respeito pelo próximo, que implica generosidade de valores, que implica merecermos definitivamente aquilo que a Revolução nos trouxe, e que implica também protegermos aqueles que nada fazem para contestar essa mesma liberdade. Um idiota desmerecedor da liberdade não pode, pela mera prática de comportamentos ignóbeis, impor sanções para milhares. Isto não é liberdade. Não é justiça. Não é nada. É apenas e só premiar a idiotice. Dar palco maior ao idiota que merece apenas e só o reconhecimento que procura, ou seja, um visionamento detalhado, por parte das autoridades competentes, das imagens do sistema de CCTV HD que faz parte do caderno de encargos de qualquer recinto desportivo de alta competição. Simples: responsabilização individual do prevaricador para não se castrar a liberdade de quem não a desmerece.
Há clubes em Portugal que já eram democracias muito antes de o próprio país o ser. Não faz sentido que sejam agora as maiores vítimas de um sistema composto por dirigentes que não conseguem ser minimamente hábeis na tutela da disciplina do desporto nacional. Não conseguem? Mudem! Ou mudem-se! Era a nossa democracia ainda uma criança quando António Lobo Antunes lavrou a obra Conhecimento do Inferno, com passagens do monólogo – que passou a diálogo com a ausente Joana – que se mantêm pertinentes até aos dias de hoje. «E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido a guilhotina». Haverá metáfora mais acutilante e certeira para o fim da ditadura? Haviam abolido a guilhotina! Abolida que continua até aos dias de hoje, não a substituam agora por qualquer outra forma de opressão do povo… e permitam que os nossos sorrisos possam abandonar o sarcasmo de outrora.