Turquia A ‘chantagem’ de Erdogan

Erdogan ainda sonha com o velho império otomano. E não se coibiu de usar refugiados desesperados como peões.

A Turquia finalmente usou o trunfo com que ameaça há muito a União Europeia. Esta semana, com a escalada das hostilidades na Síria como pano de fundo, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, rasgou o acordo assinado com a UE em 2016, para manter no seu território mais de 3,6 milhões de refugiados, sobretudo sírios e afegãos, a troco de uns expressivos 6 mil milhões de euros em fundos europeus. Pretensamente, a disputa é sobre dinheiro – Erdogan quer mais – mas muitos veem-na como uma forma de pressionar Bruxelas a fechar os olhos à presença da Turquia na província síria de Idlib, onde já morreram cerca de 60 soldados turcos face à ofensiva de Bashar al-Assad. Menos de uma semana depois, Erdogan conseguiu o queria – esta quinta-feira assinou um cessar-fogo em Idlib com o Presidente russo, Vladimir Putin, aliado próximo de Assad.

«Isto até tem um nome, creio que é chantagem», considera José Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA). «Não há aqui coincidências nem ingenuidades», salienta – dias antes da abertura das fronteiras da Turquia com a Grécia, no domingo, 33 soldados turcos foram mortos num único ataque aéreo sírio em Idlib.

Caso seja cumprido, o cessar-fogo «acalmará a situação no terreno e poderá permitir algum reentendimento quanto à situação dos refugiados, voltar ao anterior acordo», considera o investigador do IPRI. Se esse acordo entre Turquia e UE melhorava de alguma forma a situação, já é outra discussão.

«Sempre fomos contra o acordo, não era uma solução», afirma Vasilis Starvaridis, diretor-geral dos Médicos sem Fronteiras na Grécia. «Bloquear pessoas, deixá-las abandonadas, seja num campo de refugiados fechado ou numa ilha, nunca resolve o problema», considera. «Quando as pessoas estão desesperadas, não vão ser paradas por isso. As coisas simplesmente vão tornar-se mais e mais perigosas», garante o dirigente dos Médicos Sem Fronteiras, que desde que o acordo foi assinado, em 2016, recusam fundos de Bruxelas e dos países-membros da UE. «São responsáveis em grande parte pelo problema».

Peões num jogo geopolítico
Enquanto Erdogan negociava com Putin no Kremlin, milhares de pessoas juntavam-se na fronteira terrestre da Turquia com a Grécia. «Sonham com a Europa, muitos têm lá contactos, família, vizinhos e amigos, querem encontrar trabalho», explica Starvaridis. «Nisso todos somos semelhantes, sonhamos com um futuro melhor, para nós e para as nossas famílias», nota.

Na Grécia continental, a maré humana foi recebida com gás lacrimogéneo e cargas da polícia grega – acusada pela Turquia de usar também fogo real, matando pelo menos cinco pessoas. «Fake news», respondeu o Governo grego, do conservador Kyriakos Mitsotakis, apesar de a Associated Press ter encontrado indícios disso. Entretanto, também terá sido disparado gás lacrimogéneo a partir do lado turco, contra os guardas fronteiriços gregos. A situação escalou de tal forma que, horas antes do cessar-fogo em Idlib, foi anunciado o envio de mil soldados de elite turcos para a fronteira, para impedir a Grécia de repelir migrantes.

Ao mesmo tempo, a fronteira da Turquia com Idlib continuou fechada, impedindo as populações que Ancara diz querer proteger de escapar aos bombardeamentos de Assad. «Ninguém se aproxima porque [os guardas turcos] disparam sobre tudo o que mexe», contou um voluntário de uma ONG ao El País.

O sonho de um império
Afinal, o que andam as tropas turcas a fazer em Idlib? A resposta mais óbvia é que esta província é o ultimo reduto dos opositores de Assad, apoiados pela Turquia – há umas semanas parecia estar à beira de ser reconquistada por Damasco.

Contudo, por trás deste conflito estão problemas mal resolvidos que vêm de há um século, desde o desmembramento do Império Otomano, de que fazia parte a Síria e boa parte do Médio Oriente. Províncias sírias como Idlib «estão numa zona de transição entre populações turcas e árabes», explica Teixeira Fernandes – algo que Erdogan não se coíbe de explorar. O investigador acha improvável que a Turquia, sucessora do Império Otomano, planeie anexar estes territórios – «mesmo que haja essa ideia em Erdogan» – devido às repercussões internacionais que isso traria. «Mas que há uma ambição da Turquia atual de reconstituir a sua influência nestes territórios não tenho dúvida nenhuma», assegura.