Por que se voluntariou para os ensaios clínicos da vacina. Considera que é uma forma de os cientistas também darem o seu contributo?
Porque sou corajosa, talvez (risos). Falando a sério, claro que considero que é uma forma de dar o meu contributo. Mas também o fiz por curiosidade científica. Sou microbiologista e conheço bem a estrutura das vacinas, chefio uma equipa que está na fase final do desenvolvimento de um ‘corona kit’ – um dispositivo que, com base num pequeno chip que se coloca na língua, tira uma amostra da saliva e, em minutos, e sem ser invasivo, dá o resultado da presença ou não do vírus. Ou seja, eu vivo neste meio científico e sei que a farmacêutica Pfizer tem a mais recente tecnologia, topo de gama, o que promete excelentes garantias nesta área. Por outro lado, a cientista que está à frente dos ensaios na Turquia é minha amiga e eu estive sempre a par do desenvolvimento dos estudos desta vacina nas duas primeiras fases, quer na dos testes em células, quer nos testes em animais. E sabia que estava tudo a correr muito bem. Sabia o suficiente para confiar e me envolver no estudo como voluntária.
Ser ‘cobaia’ nestas experiências representa sempre um risco. Não tem medo?
Sou médica e contacto permanentemente com o vírus. Se tiver de ser infetada pela doença, que seja por boas razões. Estamos a lidar com uma infeção mundial gravíssima, mas é um risco que temos de correr.
O que lhe explicaram sobre o ensaio desta nova vacina?
Quando estive pela primeira vez no laboratório em Istambul, onde está a decorrer o ensaio, começaram por me explicar quais as possíveis reações adversas. As reações mais inesperadas e mais graves destas vacinas são as reações anafiláticas – as reações alérgicas repentinas e graves que podem ser fatais. Mas, tanto quanto sei dos estudos efetuados nos Estados Unidos, no universo das 44 mil pessoas envolvidas, ainda ninguém teve qualquer efeito secundário sério. Apenas febre, vermelhidão, dor e inchaço. Só isso.
Sentiu algum destes efeitos?
Apenas uma dor local no braço após a injeção. Durou o dia todo.
Teve de assinar alguma documentação em como se responsabilizava pelos efeitos secundários da vacina?
Sim. Mas primeiro foi preciso passar nos testes. Fizeram-me a zaragatoa, para ver se estava contaminada ou não, depois fizeram-me duas análises ao sangue, para avaliação geral, para verificarem a composição do meu sangue, para confirmarem que eu não estava a tomar outros medicamentos, como antibióticos, pois podem prejudicar o resultado do ensaio clínico da vacina… Só depois me pediram para assinar alguns papéis, nos quais tive de confirmar que aceitava todos os prováveis riscos da doença. A seguir, injetaram-me a primeira dose da vacina. Isto aconteceu na semana passada. Vou tomar a segunda dose daqui a duas semanas. Quando tomei a primeira dose, deram-me um telemóvel com uma aplicação, através da qual todos os dias tenho de informar a equipa de controlo sobre a minha situação clínica: dou-lhes informação geral e respondo a algumas perguntas sobre efeitos secundários do tipo se tenho vómitos, febre, arrepios. É assim que eles me ‘controlam’, ou seja, vigiam o desenvolvimento do ensaio clínico nos voluntários que participam nele. Agora, antes de tomar a segunda dose da vacina, volto a repetir todas as análises e testes que já fiz antes. E, duas semanas depois, será tudo repetido mais uma vez. O objetivo é verificarem se a vacina cumpriu a sua função: criar anticorpos no meu organismo que combatam a doença. Nestas análises, procuram também se já tenho células imunes ao vírus, ou seja, se o meu organismo já criou memória celular que impeça a entrada do vírus nas células. Se tudo isso se verificar, saberão que a vacina, pelo menos comigo, está a funcionar.
Quando terminar o estudo vai continuar a ser monitorizada? O processo é o mesmo, por telemóvel?
Para efeitos iniciais da vacina, chega uma semana, mas para avaliação da eficácia protetora da vacina, seremos acompanhados durante dois anos.
Quando fica a saber se pertence ao grupo placebo ou se levou o medicamento?
Só se sabe no final do estudo. Por isso é que este é o chamado estudo duplamente cego. Até ao final do ensaio, ninguém sabe quem está no grupo ‘placebo’ ou no grupo da vacina real. É desta forma que se controla tudo o que pode e não pode acontecer. Atribuem um código a cada voluntário e só na sede do centro de investigação, onde está a equipa que lidera o ensaio clínico, é que sabem se eu estou no grupo placebo ou não. Eu estou a participar no ensaio aqui, em Istambul, e nem mesmo os nossos investigadores aqui têm essa informação. No entanto, explicaram-me que, se eu estiver no grupo placebo – que é o grupo de pessoas que recebe uma ‘falsa’ vacina, apenas um soro inócuo –, poderei ser vacinada depois de todas estas fases.
Devido ao facto de esta vacina ser em duas doses, acha que vai ser ainda mais difícil distribuí-la pelo mundo?
Sim. Esse é um dos problemas com esta vacina. Mas outro pode ser o do armazenamento, porque a vacina deve ser armazenada preferivelmente a 80º negativos.
Quanto à distribuição, pode ser complicada a gestão das duas doses no sentido de conseguir que as pessoas as tomem no tempo e com os intervalos certos. Pode ser difícil e muito trabalhoso rastrear todas as pessoas nesta perspetiva.
Disse-me que o grande problema da vacina era o armazenamento. Que material é necessário para conservá-la à temperatura necessária?
Sim, o armazenamento e o transporte vão ser um problema porque a vacina de mRNA tem de ser mantida a 80º graus negativos. Têm de ser criadas caixas e sistemas de transporte específicos.
Como se faz o transporte para outros países? A logística disto é complicada?
Sim, a logística é complicada especialmente para países em desenvolvimento. Mas nós temos experiencia na entrega de comida e medicamentos a baixas temperaturas e isso pode ser feito.
Os países em desenvolvimento têm esse tipo de equipamento?
O problema não é o equipamento, um congelador pode ser encontrado em todo o lado. Mas nós temos de instalar mecanismos estritos de controlo para conseguir a entrega sem nenhuma demora.
Quando tiver levado as duas doses da vacina, caso tenha levado a real, tem de continuar a tomar precauções?
Se eu tiver levado a vacina real, vou ter anticorpos, anticorpos protetores, por isso não há necessidade de ter tanta preocupação como antes. Ainda assim, eu tenho de usar máscara e todo o equipamento de proteção dentro hospital, como faz toda a gente, porque ainda não se sabe por quanto tempo vou estar protegida. Nós não sabemos ainda os resultados a longo prazo desta vacina. Ainda tenho de me proteger, mas vou sentir-me mais segura. Com a vacina, vou ter anticorpos. Não sei é quantos meses ou quantas semanas os anticorpos vão continuar a proteger-me. O produtor das vacinas afirma que os anticorpos vão proteger pelo menos durante um ano, mas não temos a certeza. Por isso, mesmo com a vacina, teremos de continuar a proteger-nos.
Portanto, só quando tivermos uma reação geral positiva à vacina é que podemos descontrair?
Sim, quando a imunidade estiver estabelecida na população, podemos ficar mais relaxados e livres, mas até lá temos de nos proteger.
Está a fazer a sua vida normal?
Estou a fazer a minha vida normal, tal como os outros voluntários. E tomo todas as precauções, como qualquer pessoa normal. Se os que tomam a vacina real, ao contrário dos que levam o placebo, não usassem proteção, estaríamos a denunciar e a perverter todo o ensaio clínico.
Não saberá tão cedo quando está livre de riscos. É uma roleta russa?
Não sabemos os resultados ainda, mas, olhando para a tecnologia médica e biomedicina, eu posso dizer que o risco é mesmo muito baixo para efeitos secundários a longo prazo depois de um ou dois anos. Mas estamos perante uma pandemia muito violenta e é preciso arriscar. Há milhões de infetados pelo mundo, por isso, tem de se optar: ou covid ou vacina? (risos). Temos de escolher! É uma roleta russa, sim, eu sei, mas está provado que esta tecnologia é segura para este vírus e é segura para outras doenças, pois é usada também no tratamento de cancro. Mas sim, tive de arriscar ficar infetada de qualquer forma. O risco de complicações por causa da infeção é mais alto do que os riscos da vacina. Se comparar, os riscos das doenças são muito mais elevados do que os riscos das vacinas.
O que acha que vai acontecer com esta vacina? Vamos ter de a tomar todos os anos?
Eu acho que não vamos ter de tomar a vacina todos os anos porque este vírus é diferente do vírus da gripe. Para a gripe, tem de se tomar todos os anos a vacina porque o vírus está sempre a mudar a sua estrutura e, por isso, temos de fabricar uma nova vacina todos os anos. Em relação ao coronavírus, creio que a estrutura não vá sofrer mutações tão facilmente. São vírus diferentes. Quando a população mundial tiver a vacina, que vai ser distribuída muito rapidamente através de muitas farmacêuticas – porque há múltiplas empresas a produzir a vacina, com diferentes tecnologias, é certo, e cada uma delas tem vantagens e desvantagens, mas vão funcionar, tenho a certeza. No final da primavera de 2021, a doença vai começar a desaparecer na população e vai diminuir o rácio de infetados. Depois disso, acho que a população que for vacinada nem vai precisar de levar uma segunda dose. Uma dose será suficiente para parar a propagação. Sou uma pessoa muito otimista (risos).
É uma pessoa otimista por natureza ou só em fases experimentais (risos?)
Não, sou sempre otimista (risos).
Temos assistido a uma aceleração no processo científico que é contranatura. Pela primeira vez, como aconteceu com a guerra do Golfo, nos anos 90, acompanhamos em direto os passos dos cientistas, que parecem estar a ser empurrados para dar resposta no imediato a esta calamidade. Mas a ciência tem o seu timing. Como poderemos ter o seu otimismo e confiar numa vacina que foi produzida tão rapidamente?
Porque antes de a covid aparecer já estas empresas estavam a investigar vacinas usando esta mesma tecnologia. Esta estava a ser estudada há três anos para ser usada no cancro. Quando o SARS-Cov2 apareceu, em dezembro, decidiram mudar o foco da investigação para o novo vírus. Ao mesmo tempo, esta pandemia conseguiu pôr os cientistas de todo o mundo a colaborar diariamente e a partilhar informações que íamos recolhendo sobre o vírus. Com esse conhecimento e a tecnologia que já se tinha, tudo se tornou mais fácil. É como cozinhar: já temos todos os ingredientes e só mudamos o prato principal. Empresas como a Pfizer, a AstraZeneca e outras produtoras de vacina tinham a tecnologia e só mudaram o vírus. Obviamente que este processo foi muito rápido. Ainda assim, a única coisa que pode ser uma preocupação nestas vacinas é o seu poder de proteção, ou seja, se conseguem proteger suficientemente ou não. No entanto, os resultados dos estudos estão a mostrar que sim, que estas vacinas vão proteger o suficiente contra o vírus. Sim, foi rápido mas eles tinham a tecnologia e todos os cientistas trabalharam muito e no duro e prepararam as vacinas rapidamente, mas não é preciso ter-se medo porque não são vacinas mal preparadas ou porque há algo que falte nestas vacinas. Eu acredito que eles não se esqueceram de nada e que não saltaram nenhum dos passos que tinham de ser dados.
À velocidade a que a ciência está a ser obrigada a dar respostas, que hipóteses existem de serem cometidos erros?
A produção foi rápida, mas foram garantidos todos os mecanismos de controlo. Esta vacina passou por todas as etapas normais e provou, em primeiro lugar, que é eficiente quando testada em células fora do corpo; em segundo lugar, nos testes com animais, demonstrou que não houve efeitos secundários severos. Só depois de toda esta demonstração de eficiência é que foi testada nas pessoas. E até última fase, em que nos encontramos, ainda não houve notícia de qualquer efeito secundário alarmante nos voluntários. Mas é claro que podem ser cometidos erros, como as reações inesperadas que podem levar à morte. Só que eu deparo-me todos os dias com milhares de mortes e, perante isso, não me vou preocupar com os efeitos secundários. É um risco que se tem de correr. Mas ainda se aguarda a luz verde da FDA(Food and Drug Admnitration, o regulador norte-americano dos medicamentos, equivalente ao nosso Infarmed.
Quando terminam os ensaios clínicos?
A maioria dos ensaios clínicos vai estar concluída no final deste ano.
Mas algumas notícias que têm saído na comunicação social dizem que os ensaios só estarão concluídos quando 164 voluntários estiverem infetados e que só nessa altura os resultados serão analisados. Isto é verdade?
Este estudo é realizado em três fases: primeiramente a vacina é dada a um pequeno grupo de pessoas e tem o objetivo de testar segurança e eficiência. Na fase seguinte a vacina é dada a um grupo maior, da ordem das centenas, e mais diversificado, incluindo por exemplo crianças e idoso, com o objetivo de aferir eventuais efeitos diferentes nesses grupos. Por fim, é dada a milhares de pessoas para se observar quantas ficam infetadas. Os 99 voluntários infetados foram contaminados ainda na primeira fase do ensaio. As companhias farmacêuticas estão agora na última etapa. Por exemplo a Moderna recrutou 30.000 participantes. Para que se possa obter aprovação do uso de emergência tem que se testar a capacidade o potencial protetor das vacinas. A Pfizer anunciou os primeiros resultados de ensaios da última fase onde se conclui que a vacina tem uma capacidade de proteção de 90% de dois meses. São resultados preliminares encorajadores, mas em termos de efeitos a longo prazo temos que aguardar para ver. É importante não esquecer que estamos numa batalha com uma doença que infetou 12 milhões de pessoas e já matou mais de 550 000 mil.
Quando espera que a vacina esteja em farmácias?
Há empresas diferentes a produzir diferentes vacinas. Eu acho que a primeira vai ser a da Pfizer, que estará pronta no início do próximo ano, em janeiro provavelmente. Nos primeiros três meses, a vacina vai ser distribuída nos diferentes países. Os Estados Unidos e a Alemanha já compraram milhões de doses. Depois, há também as outras empresas, como disse, que ainda não concluíram os ensaios, mas que deverão estar prontas para distribuição no segundo trimestre do próximo ano.
Como médica e microbiologista começou a estudar o vírus desde quando?
Logo em março. Eu trabalho num hospital muito grande em Istambul, onde temos o nosso próprio laboratório, e colaboro com a Organização Mundial de Saúde e com a Sociedade Europeia de Doenças Infecciosas. Há muitas pessoas infetadas no nosso país. Começámos a ter muitos infetados, recolhi amostras do vírus em pacientes, deixei-o crescer e fiz o seu rastreio para acompanhar as suas mutações. Isso é muito importante porque sabemos que algumas mutações podem vir a ser resistentes ao rastreio e podem causar resistência à vacina. Portanto, estamos a ‘perseguir’ o vírus para ver se há alguma mudança na sua estrutura. Estou a tentar encontrar na nossa região, na Europa e em países asiáticos ou em países árabes, ‘irmãos e ‘irmãs’ do vírus que tenho em Istambul. Por exemplo, sabemos que o nosso primeiro caso em Istambul veio dos Estados Unidos. Provavelmente algum turista. Portanto, nós também estamos a fazer isso, a rastrear mundialmente o vírus.
Ainda há uma grande demora no rastreamento da população. Como funciona o Corona Kit que está a desenvolver?
São testes rápidos para diagnosticar a covid. É um dispositivo com um chip pequeno que se coloca na língua, retira uma amostra da saliva e faz a análise da mesma. Em poucos minutos, conseguimos os resultados. É muito fácil de fazer e não é tão invasivo como o processo que temos agora. Se for bem-sucedido, vai estar disponível no próximo mês. Veremos, ainda estamos a trabalhar nisso.
Esse kit só estará disponível na Turquia?
Por agora, sim. E especialmente para os aeroportos, centros comerciais, hospitais e escolas, porque vai ser mais fácil, muito mais rápido. Mas gostaria de encontrar maneira de vender para outros países, claro.
Algumas pessoas dizem que agora estamos a entrar numa década de pandemias. Concorda?
Não estamos a falar propriamente de pandemias, mas de vírus emergentes diferentes e que virão depois deste. Há quatro ou cinco anos, tivemos o vírus zica, agora temos o coronavírus, há dez anos tivemos o influenzavírus. Por isso, acredito que vamos continuar a ter este tipo de vírus talvez década a década. Mas não penso que vão causar pandemias como esta. O que nós estamos a fazer agora, como cientistas, é tentar preparar o mundo para ameaças futuras.
Donald Trump tinha prometido uma vacina até as eleições americanas. Entretanto, perdeu a Presidência. Houve interferência política no timing do anúncio da Pfizer?
Mas as vacinas ainda não estão prontas! Não acho que seja um tema político, porque, como lhe disse antes, eles têm de completar todos os passos e ainda estão à espera de receber os resultados da última fase do estudo. Portanto, não podemos ter agora as vacinas, nada está acabado. O processo ainda está a decorrer… O que Trump fez – anunciar uma vacina que ainda não existia – é que foi política.