Atenas, 1896. Os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna tinham a sua edição inaugural no país que criou a disputa desportiva quadrienal de Olímpia. Poucas eram as modalidades presentes. O futebol não era, definitivamente, uma delas.
Aliás, futebol e Jogos Olímpicos nunca viveram em sintonia, com fases distintas – a pré-Campeonatos do Mundo, na qual participavam seleções (e equipas!) representativas dos seus países; a híbrida, na qual o torneio era aberto apenas aos jogadores amadores, uma decisão conveniente para todos os países do leste da Europa que, apesar de terem atletas bem pagos à custa de profissões fictícias, se apresentavam sob a fachada de um falso amadorismo; a fase do vale-tudo, em que os países surgiam com as seleções que bem entendiam escolher; e finalmente o compromisso de a prova ser disputada com equipas de jogadores abaixo dos 23 anos (com direito a três com qualquer idade superior), e não representativas das federações nacionais, como aliás podem confirmar através dos emblemas que exibem nas camisolas.
Entrar pelo caminho da explicação pormenorizada de todas estas alterações contínuas seria fastidioso. Os interesses políticos e económicos ajudaram e alimentaram a bandalheira. O próprio Pierre de Coubertin, sacrossanta figura olímpica, pouco peso teve nas organizações das edições seguintes à primordial de Atenas. Ingenuamente, ou talvez não, não tardou a ver a grandeza dos seus Jogos abafada por entre a organização das Grandes Exposições Internacionais de Paris, St. Louis e Londres. Os Jogos Olímpicos não passaram de um circo enquanto as negociatas de todos os géneros eram feitas sem que houvesse alguém capaz de lhes passar cartão.
Mas voltemos ao futebol, que é o assunto que aqui nos traz. E regressemos a Atenas e a esse ano mágico de 1896 em que os Jogos Olímpicos voltaram a nascer. Apesar de não haver resultados oficiais sobre qualquer disputa futebolística durante os dias 6 e 15 de Abril, tempo de duração dos mesmos.
Alguém registou que um embate entre uma seleção de Atenas e outra da cidade de Esmirna, na altura parte do Império Otomano, resolveram enfrentar-se, com a vitória a cair para o lado oriental por 15-0.
A História não registou a partida e muitos dos seus estudiosos não tiveram qualquer pejo em considerar tal encontro como pura fantasia. Assim sendo, entramos por outro buraco sem saída porque nos Jogos Olímpicos de 1900, 1904 e 1906 (essa excrescência meio tresloucada que ganhou, mais tarde, o nome de II Jogos Olímpicos de Atenas, uma invenção dos governantes atenienses que o Comité Olímpico Internacional acabou por não oficializar), o futebol entrou de corpo e alma na grelha dos desportos olímpicos.
Ou melhor, mais de corpo de que de alma. Fundada em 1904, a Federação Internacional de Futebol Association (FIFA), decidiu estender o seu longo braço sobre todos os torneios internacionais que decorressem pelos sete cantos do mundo e, a despeito de o COI considerar oficiais os jogos de futebol disputados em 1900 e 1904, a FIFA decidiu ignorá-los.
Mas como a FIFA pode mandar muito mas, felizmente, não manda nada nestas páginas, tratemos de saber o que se passou nesse período de quatro anos. Em 1904, em St. Louis, os Jogos Olímpicos foram integrados na muito propalada St. Louis World’s Fair, e tiveram a sua cerimónia de abertura no dia 1 de Julho e a de encerramento a 23 de Novembro. Chiça!, exclamarão alguns com a língua mais afiada. Mas assim ordenava o dinheiro, pois então.
O torneio de futebol ficou para o fim, jogado entre os dias 16 e 23 de Novembro, entre apenas três equipas, o Galt Football Club, que representou o Canadá, e os Christian Brother’s College e St, Rose Parish, representando os Estados Unidos. Medalha de ouro para os canadianos, fossem lá eles quem fossem. A prova foi em estilo campeonato, e o Galt FC venceu os seus dois adversários por 7-0 e 4-0, respetivamente. O primeiro passo estava dado mas, convenhamos, era um passo muito titubeante e que não refletia o entusiasmo que já rodeava a modalidade.
Na terra do futebol!
Os Jogos Olímpicos de 1908 tiveram lugar em Londres. Também integrados numa enorme festa, a International Multi-Sport Event, no espaço temporal igualmente inacreditável que mediou entre 27 de Abril e 30 de Outubro. Finalmente, e porque os ingleses colocaram algum brio no assunto, surgiram representações nacionais como a Grã-Bretanha, a França, a Suécia, a Holanda, a Dinamarca e uma França B, com a Hungria e a Boémia a desistirem à última da hora.
Montado em honra dos mestres ingleses, com os desafios disputados no White City, a Grã-Bretanha arrecadou a medalha de ouro, batendo a Dinamarca no último jogo do torneio, agora em feitio de Taça, com eliminatórias – 2-0. Mas o grande herói dessas tardes londrinas foi um dinamarquês, Sophus Krølben Nielsen, marcador de nada menos do que 10 golos na absurda vitória das meias-finais contra a França.
O futebol parecia, finalmente ganhar os seu espaço firme nos Jogos Olímpicos. Quatro anos mais tarde, em Estocolmo, já surgiram onze seleções em liça. E todas elas obrigatoriamente filiadas na FIFA que já fazia o que queria e lhe apetecia. No dia 29 de Junho, a bola começou a rolar e as surpresas surgiram: Finlândia, 3 – Itália, 2; Áustria, 5 – Alemanha, 1; Holanda, 4 – Suécia, 3.
As meias-finais disputaram-se entre a Grã-Bretanha e a Finlândia (4-0) e entre a Dinamarca e a Holanda (4-1). A final repetia-se e, enquanto a Holanda garantia a medalha de bronze com um esclarecedor 9-0 à Finlândia, os britânicos mantinham o ouro na sua posse com uma vitória por 4-2.
Foi por essa altura que o torneio de futebol dos Jogos Olímpicos começou a ser tido por muitos como um verdadeiro Campeonato do Mundo. Afinal, todas as grandes seleções da Europa tinham a sua presença assegurada e levando consigo os melhores jogadores dos seus países, desde que fossem completamente amadores.
Era, no entanto, necessário alargar a prova a representantes de outros continentes. Algo que não tardou. Como não tardou que britânicos e irlandeses começassem a exigir a capacidade de recrutar profissionais para levar ao Jogos. Ao fim ao cabo, e apesar das duas medalhas de ouro consecutivas, a Grã-Bretanha reclamava que estava muito longe de poder apresentar o seu onze mais competitivo.
Entretanto, a I Grande Guerra assolou a Europa. Os Jogos Olímpicos só regressariam em 1920, em Antuérpia e, pelo caminho, muitos dos grandes jogadores britânicos (e não só, claro está!) tinham perdido a vida ou ficado incapacitados por via do macabro conflito.
Os sul-americanos! E Portugal!
Em Antuérpia as modalidades já tinham chegado a um número muito interessante: 154. Catorze países surgiram no torneio de futebol e, finalmente, um deles não era Europeu – o Egipto. Ainda dizimada pela guerra, a seleção britânica foi afastada pela Noruega (1-3) logo de início. Os egípcio não suportaram a força da Itália (1-2) e a Checoslováquia ameaçou ao que ia ao derrubar o Reino Unido da Sérvia Croácia e Montenegro por 7-0.
Decididos a ganhar em sua própria casa, os belgas fizeram um percurso sem espinhas, tirando proveito de ficarem isentos da primeira eliminatória – Espanha (3-1), Holanda (3-0) e Checoslováquia, na final (2-0). Mas nem sempre o que parece, é. O segundo golo belga, alegadamente fora-de-jogo, fez com que os checos perdessem a cabeça e saíssem de campo.
Desqualificados, houve que se proceder a um torneio entre os semi-finalistas vencidos para decidir a prata e o bronze que acabaram nas mãos de espanhóis e holandeses. O torneio olímpico de futebol começava a tornar-se apetecido como nunca. Já não era mais uma brincadeira entre amigos. Era uma guerra.
Em 1924, os Jogos Olímpicos tiveram lugar em Paris. Uma surpresa inacreditável viria a deixar de boca aberta e a babar na gravata aqueles que nunca tinham visto a arte dos sul-americanos. Além disso, o advento do profissionalismo e a insistência tanto pela FIFA como pelo COI de que apenas jogadores amadores poderiam participar no torneio, fez com que a Grã-Bretanha e a Dinamarca desistissem. A seleção do Uruguai, que fazia a sua estreia, não tardou a encher os olhos de quem a via à custa de um futebol maravilhoso no qual brilhavam estrelas como Scarone, Cea, Padrone, Romano, Nasazzi e, sobretudo, José Leandro de Andrade, que tinha a alcunha de Maravilha Negra.
Um a um, dizimaram os adversários: Jugoslávia (7-0), EstadosUnidos (3-1), França (5-1), Holanda (2-1) e, na final, Suíça (2-0). Não. O futebol nunca mais seria o mesmo. A Celeste Olímpica, tal como foi batizada, era francamente a equipa mais forte do planeta. E se fosse preciso prová-lo, quatro anos mais tarde, em Amesterdão, trataram de o fazer.
Para Portugal, os Jogos Olímpicos de Amesterdão foram o primeiro grande momento de glória para a seleção nacional. A a delegação portuguesa embarcou no «sud express» rumo a Paris, primeira etapa da sua viagem com destino a Amesterdão.
Chefiavam a comitiva, Ribeiro dos Reis e Salazar Correia. Cândido de Oliveira era o selecionador e Ricardo Ornellas juntar-se-lhe-ia em Paris para o coadjuvar no comando técnico da equipa. O representante do Comité Olímpico Português junto do grupo era Manuel Latino.
Os guarda-redes eram António Roquete (Casa Pia) e Cipriano Santos (Sporting); defesas: Carlos Alves (Carcavelinhos), Jorge Vieira (Sporting) e Óscar de Carvalho (Boavista); médios: Raul Figueiredo (Benfica), Augusto Silva (Belenenses), César de Matos (Belenenses) e Aníbal José (V. Setúbal); avançados: Waldemar Mota (FC Porto), José Manuel Soares (dito Pepe – Belenenses), Vítor Silva (Benfica), Armando Martins (V. Setúbal), José Manuel Martins (Sporting), João dos Santos (V. Setúbal), Jorge Tavares (Benfica), Liberto dos Santos (União de Lisboa) e Alfredo Ramos (Belenenses).
A vitória inicial sobre o Chile num play-off (4-2) encheu-nos de sonhos. Logo depois, nova vitória, desta vez frente à Jugoslávia (2-1). Portugal estava nos quartos-de-final e o céu ficava ao esticar da mão. Seria o Egipto a afastar-nos das meias-finais (1-2). No entretanto, o extraordinário Uruguai encontrara um adversário à altura de toda a sua incomensurável habilidade: a Argentina. Parecia que dançavam um tango sobre os relvados holandeses: Uruguai, 2 – Holanda, 0; Argentina, 11 – Estados Unidos, 2; Uruguai, 4 – Alemanha, 1; Argentina, 6 – Bélgica, 3; Uruguai, 3 – Itália, 2; Argentina, 6 – Egipto, 0. A final estava marcada para ambos desde o primeiro minuto. Os uruguaios venceram por 2-1 numa finalíssima.
Dois anos depois, receberam o primeiro Campeonato do Mundo de futebol e voltaram a bater a Argentina na final (4-2). Eram os reis do mundo e queriam ser reconhecidos como tal. O conflito com a FIFA durou anos e anos a fio. Para os uruguaios, essas duas medalhas de ouro olímpicas deviam ser reconhecidas como vitórias em campeonatos do mundo, porque tinham sido organizados pela FIFA e porque eram, na verdade, o lugar onde se definia os melhores dos melhores.
Recentemente a FIFA resolveu ceder pelo cansaço e permite, hoje em dia, que na camisola da seleção uruguaia brilhem quatro estrelas sobre o emblema.
Mais uma prova que o futebol olímpico viveu sempre sem eira nem beira. Como estabelecer um campeão do mundo antes de existir uma competição chamada Campeonato do Mundo? Que fazer com os grandes vencedores dos anos que se seguiram, até à definição da regra dos que podiam ou não participar nos Jogos Olímpicos?
Em 1932, não houve torneio olímpico de futebol. A tranquibérnia era de tal ordem entre FIFA e COI que ninguém chegou a um entendimento sobre a organização. Em 1936, em pleno regime nazi, Berlim recebeu os jogos e a Itália de Vittorio Pozzo, que fora campeã do mundo em 1934 e voltaria a sê-lo em 1938, conquistou o torneio olímpico batendo na final a Áustria por 2-1.
Logo a seguir à II Grande Guerra, a mesma Suécia que atingiria a final do Mundial de 1958, tornou-se campeã olímpica dez anos antes dessa gesta. E em 1952, a extraordinária Hungria que passou três anos e meio invencível, mais os seus Puskás, Kubalas, Kocsis, Czibors e Hidegkutis, só perdendo a final do Mundial de 1954, em Berna, contra a Alemanha, não terá direito, igualmente, a ter uma estrela sobre o seu emblema tão nobre? O futebol é um jogo simples que os homens que nele mandam tornam confuso.
Hoje, o torneio dos Jogos Olímpicos é visto como um simples entretenimento escassamente competitivo. No Japão, os jogos vão passando despercebidos, mesmo aos mais atentos. Passaram a ser somente como um campeonato de garotos que pretendem subir pelo pau de sebo da fama etérea. Não diferem muitos da mítica vitória de Esmirna sobre Atenas em 1896. Diz que o resultado foi de 15-0. A quem é que isso importa? Mesmo que não passe de uma lenda com mais de cem anos…