George Louis Palmella Busson Du Maurier era um tipo meio façanhudo que nasceu no meio de uma família toda ela dada ao teatro e à literatura. Além disso, os cinco netos que a sua neta Sylvia Llewelyn Davies deu ao mundo foram inspiração para a imortal obra de J. M. Barrie, Peter Pan, o rapazinho que nunca cresceu. Claro que quando se ouve o apelido Du Maurier, é Daphne a primeira a saltar as barreiras da memória. A autora de livros de suspense como Rebecca ou Os Pássaros valeu a Alfred Hitchckok extraordinários filmes, absolutamente inesquecíveis, não apenas para cinéfilos como também para amadores da sétima arte.
George começou a vida profissional como cartonista. O seu filho transformou-se num famoso actor Sir Gerald Hubert Edward Busson Du Maurier, por sua vez pai de Sylvia Llewelyn Davies. Confuso? Talvez um pouco. Mas que importa? Os Maurier eram gente de bem e muito considerados na sociedade inglesa da segunda metade de 1800. George nasceu em Paris, fruto da união entre Louis-Mathurin Busson Du Maurier e Ellen Clarke. Uma mistura, portanto. Cresceu no meio de semi-verdades. Teve-se sempre em grande conta quando soube que era descendente de riquíssimos proprietários de terras que tinham fugido para Inglaterra no tempo da Revolução Francesa. Não aprendeu nada sobre a humildade no tempo em que a palavra de ordem era «Liberté, égalité, fraternité!». Quem estudou a fundo as suas origens veio a desvendar, mais tarde, que o seu avô, pai de Louis-Mathurin, era um trafulha barato que inventou para si próprio um estatuto de grand seigneur que nunca chegou a ter. Enfim, nada de demasiado preocupante para quem iria dedicar a vida a escrever histórias, verdadeiras ou inventadas, conforme soprasse o vento. Du Maurier estudou inicialmente com um desenhador de prestígio chamado Charles Gleyre e, por causa dele, mudou-se para Antuérpia onde, azar dos azares, perdeu a vista do olho esquerdo. Mais um motivo para encher a imaginação de momentos macabros dos quais já iremos falar a devido tempo. Fez os possíveis e impossíveis para recuperar a visão com o acompanhamento de um oftalmologista de grande prestígio de Düsselforf. Debalde. Encarou a sua deficiência como um caso irresolúvel e partiu para Inglaterra onde estudou química no University College de Londres. Convenhamos: dinheiro não lhe faltava. Instalou-se muito burguesmente no nº 85 da Newman Street, em Marylebone, e dedicou-se a um prolongado noivado com Emma Wightwick, concluído com a bênção da união matrimonial em Janeiro de 1863 numa igreja de Westminster.
Até este momento, estou a debitar informação basicamente banal sobre a vida de de George Louis Palmella Busson du Maurier. O assunto começa a tornar-se interessante a partir do momento em que passa a colaborar com a revista Punch.
A sua vida mudou por completo. Punch, or The London Charivari era uma publicação semanal de humor e sátira fundada em 1841 por um fulano chamado Henry Mayhew, brincalhão e bem disposto, jornalista, dramaturgo e advogado na reforma, além de gordo e vermelhusco. George sentiu-se em casa quando lhe abriram a porta da Punch em 1865.
Encomendaram-lhe, de início, dois cartoons por semana que fossem suficientemente agressivos para incomodar o puritanismo vitoriano instalado e as bases da burguesia que se abanava em leques à primeira provocação. O seu primeiro desenho a criar embaraços representava uma personagem que recebia um membro da igreja para o pequeno-almoço. Às tantas, o anfitrião desculpa-se: «Tenho receio, senhor cura, que os seus ovos estejam estragados». Ao que o eclesiástico responde alegremente para evitar embaraços. «Asseguro-lhe que há algumas partes deles que estão ótimas».
Descobrir Svengali
Está chegada a altura de falar de Svengali, a grande criação de George, e deixar para trás as suas intromissões no comportamento de uma sociedade que se preocupava mais com o parecer do que com o ser.
O problema com o olho contribuiu para que Du Maurier passasse a desenhar cada vez menos. E a sua personalidade alterou-se significativamente por causa da inferioridade de que sofria. Escondeu-se em Hampstead, onde esperava encontrar sossego e fugir da vida social de que tanto gostara e, levado pela voz do sangue, começou a escrever prolificamente. A sua primeira novela, Peter Ibbetson, não teve grande aceitação por parte da crítica e do público. Ainda assim, foi levada à cena como peça de teatro e serviu de base para um filme. George não se podia queixar. Mas é com Trilby, de 1894, que ganha um lugar na história da literatura.
Publicada na revista Harper’s Monthly em forma de seriado, Trilby tornou-se um dos maiores sucessos da literatura da época. Trilby O’Ferrall, uma rapariga de sangue irlandês, trabalha em Paris como atriz, modelo, e empregada de uma lavandaria para compor o orçamento. Todos os personagens masculinos do livro vivem apaixonados por ela. Lucy Sante, uma escritora e crítica belga definiu a obra de Du Maurier como tendo criado uma versão estereotipada da noção de boémia.
É através de Trilby que três estudantes escoceses em Paris, Taffy, Laird e William Bagot, conhecido por Little Billee, se cruzam com dois cantores, Svengali e Gecko. Trilby, apesar de cantar com uma voz cristalina, não tem a mínima noção das notas. É através do trabalho de hipnotização de Svengali que ganha coragem para subir a um palco e exibir-se para uma sala cheia. Infelizmente para ela, antes de um dos concertos ter início, Gecko e Svengali travam-se de razões e o primeiro esfaqueia o segundo que, logo em seguida, sofre um ataque cardíaco deixando a pobre rapariga à sua sorte. A sua atuação é um desastre e o público cruel despede-a com assobios e pateadas. O choque é de tal forma violento que Trilby cai numa depressão profunda que a conduz à morte. É então que Taffy confessa a Gecko que as sessões hipnóticas levadas a cabo por Svengali com ela tinham feito estragos incorrigíveis no seu cérebro já de si pouco resistente.
Esta é, basicamente, a sinopse da mais famosa novela de George du Maurier e o seu sucesso foi tremendo. Influenciada por Gaston Leroux e pelo seu OFantasma da Ópera, de 1910, a maior sensação do livro, tornou-se a figura de Svengali, tido como um desprezível aproveitador das fragilidades femininas. George Orwell agarrou-se ao facto de Svengali ser judeu para considerar Trilby um livro desprezivelmente anti-semita. E acusou George de atribuir todos os defeitos possíveis a Svengali pelo simples facto de ele ser judeu.
Subitamente, Svengali ganhou vida para além das páginas do livro de Du Maurier. Tornou-se o símbolo da rapacidade, do abusador de mulheres indefesas, um ser absolutamente desprezível e sem escrúpulos. Mesmo que não tenha sido verdadeiramente assim que o seu autor o construiu. Mas, que importa? Svengali ultrapassara a barreira da autoria. Não pertencia mais a George Du Maurier. Pertencia ao mundo. E o mundo fez dele o que bem lhe deu na gana.
Independência
O passo seguinte da sua existência foi tornar-se um substantivo. Carregado de negativismo, mas um substantivo. Servia, até, de insulto: «Esse tipo é um svengali do pior!» Ou: «Afinal saíste-me um bom svengali…» George, em Trilby, descrevera-o desta forma: «O seu espesso, pesado e lânguido cabelo negro caía-lhe por detrás das orelhas até aos ombros, num estilo de músico que tanto ofende a sociedade britânica. Tinha grandes e brilhantes olhos que encandeavam, pestanas longas, uma face de pele fina e uma barba que lhe crescia quase desde as sobrancelhas; sobre o bigode uma espécie de luminosidade que se estendia em espirais onduladas. Chamava-se Svengali e falava francês com um forte sotaque alemão. A voz era fina e agreste e, por vezes, transformava-se num desagradável falsetto».
Bem, não se pode dizer que o autor tenha feito grande esforço para que os leitores pudessem estar dispostos a simpatizar com a personagem. Descreveu-nos uma espécie de Rasputine com aqueles olhos enormes, sempre muito abertos, que tanto abarcavam o mundo em redor como submetiam à sua vontade as vítimas que escolhia. O próprio George Du Maurier chegou a desenhá-lo com uma cabeça humana em corpo de tarântula, o que é bem significativo da personalidade que quis atribuir a Svengali. Ao longo do livro assevera-nos que Svengali era perfeitamente capaz de ser francamente abusador e que se tornava, nos diálogos que mantinha, grosseiro e impertinente. Tinha um tipo de humor cínico que era mais ofensivo do que divertido e soltava gargalhadas em momentos indevidos, parecendo estar sempre no lado errado à hora errada. As suas gargalhadas, plenas de malícia, eram destruidoras. Não admira que a jovem Trilby, que só conseguia cantar em público depois de se submeter às suas sessões hipnóticas, fosse mental e fisicamente destruída pela sua influência. «Et maintenant dors, ma mignone…» tornou-se uma das frases fortes da personagem de George. E Trilby entrava num transe que não só lhe afastava os fantasmas como lhe fazia reconhecer as notas musicais de forma a cantar maravilhosamente e sem falhas.
Svengali fez maravilhas pelo seu criador. Era uma figura tão fascinante que a Harper’s Magazine, aquando da publicação da segunda parte da novela de Du Maurier, aumentou a sua tiragem em cem mil exemplares. Sinal que os monstros, ou os homens de espíritos soturnos e intenções velhacas, atraem público. Publicado como livro nos Estados Unidos, no dia 8 de Setembro de 1894, esgotou por completo a sua primeira edição também de cem mil em apenas um mês. Cinco meses mais tarde, a segunda edição desapareceu das prateleiras das livrarias num ápice: 200 mil livros.
A infeliz Trilby O’Farrall e o odioso Svengali, grotesco homúnculo que a dominava por completo, também acabaram por se transformar em sucesso no mercado inglês. Trilby tornou-se aquilo que cada um queria fazer com ela:havia bonecas Trilby, batatas-fritas Trilby, havia pasta dos dentes Trilby, um jogo de tabuleiro chamado Trilby e um puzzle de Trilby. Nos Estados Unidos fundaram uma cidade com o nome de Trilby, na Florida, cujas ruas tinham nomes de atores de teatro e de cinema.
Uma das curiosidades (e novidades) da novela é a obsessão de Trilby pela perfeição dos seus pés, algo que Svengali transforma em luxúria. O mercado não deixou passar esse pormenor: o nome de Trilby foi dado a uma série de sapatos de senhora de saltos altos e os cartazes publicitários anunciavam: «Tenha o perfeito pé de Trilby». «Não vai outro ao Passeio», diria a Luísa do Primo Basílio.
Svengali, o patife, não consegue levar a sua vontade avante. Trilby, ao contrário do que ele julgava, não se deixa seduzir pelas suas artes de bruxaria. Prefere um jovem inglês de visita a Paris e apaixona-se por ele. Algo que Svengali não consegue suportar, logo ele que se considera um ser superior, um homem acima dos homens. A luta é, então, intensa. Trilby sabe que está sob o domínio de Svengali e que precisa dele para continuar a ser uma diva da ópera. Ao mesmo tempo, o amor exige-lhe que se liberte desse poder castrante e continuamente ameaçador. Quando saiu das páginas do livro para o teatro, toda a Londres tremeu de prazer e as salas encheram-se para verem o grande actor Sir Herbert Beerbohm Tree a fazer o papel de Svengali e Virginia Harned no lugar da heroína. O cinema também não tardou a pôr as mãos na obra de George. Entre 1914 e 1915 surgiram três versões de Trilby, em película muda, como está bem de ver.
Em 1931, a Warner Brothers produziu Svengali, com John Barrymore e Marian Marsh. Em 1983, uma série televisiva igualmente chamada Svengali (1983) teve como protagonistas Peter O’Toole e Jodie Foster.
George Du Maurier morreu no dia 8 de Outubro de 1898 e já se confessara cansado de toda a barulheira que rodeava as suas personagens. O livro pode ter caído no esquecimento, mas rendeu-lhe, à época, quase 48 mil Libras Esterlinas em direitos de autor. Havia que agradecê-los a Svengali.