A falta de mão-de-obra, o aumento dos custos de materiais e de energia no setor da construção – e não só – estão a paralisar a execução dos projetos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). E os números falam por si. Nas últimas seis semanas só foram executados 0,2% do total da verba do plano, no valor de 39 milhões de euros, alertou o Fórum para a Competitividade. «A construção está com muita dificuldade em contratar mão-de-obra e, ao mesmo tempo, depara-se com um aumento generalizado de custos da energia e, por isso, estão com uma grande dificuldade em concretizar as obras que estão em cima da mesa e que já foram contratualizadas», garantiu ao Nascer do SOL Pedro Braz Teixeira, diretor do Gabinete de Estudos do Fórum para a Competitividade.
Uma ameaça reconhecida por Manuel Reis Campos, presidente da CPCI e da AICCOPN, ao admitir que a anómala subida dos preços das matérias-primas, da energia, incluindo os combustíveis e dos preços dos materiais de construção e a falta de mão-de-obra qualificada no setor são os dois principais constrangimentos operacionais apontados pelas empresas. «As empresas do setor têm, como sempre tiveram, capacidade para responder aos desafios colocados pelo país, pelo que fatores que são externos à dinâmica própria da atividade produtiva das empresas não podem colocar em causa a execução dos investimentos de acordo com o planeamento previsto, pelo que é necessário implementar soluções concretas para estes problemas», diz ao nosso jornal.
Ainda assim, o responsável reconhece que a subida de preços já se verificava antes da eclosão da guerra na Ucrânia mas entretanto a situação foi agravada, daí a associação ter apresentado ao novo Governo, assim que tomou posse, um pacote de medidas essenciais, de caráter extraordinário e transitório, com o objetivo de «salvaguardar a continuidade da atividade das empresas e permitir tanto a conclusão dos projetos em curso, como a concretização dos investimentos planeados, designadamente no PRR e, também, no Portugal 2020, que terá de ser concluído até ao final de 2023». Acrescenta que, no final do último trimestre, registava-se ainda um total de 7,3 mil milhões de euros de fundos europeus por executar.
«O Governo criou o Regime Excecional de Revisão de Preços, que responde a questões que colocámos e pode dar um contributo positivo para permitir a execução dos projetos, porque vai de encontro a necessidades das empresas e dos donos de obra. Mas este é um primeiro passo de um caminho que tem de continuar a ser percorrido e apresentámos outras medidas que esperamos ver implementadas, para que seja possível assegurar a execução dos investimentos planeados e a salvaguarda das empresas». Dá como exemplo a necessidade de dar maior celeridade às adjudicações ou a recuperação do regime da tentativa de conciliação obrigatória.
Quanto à falta de mão-de-obra, Reis Campos aponta para a necessidade de 80 mil trabalhadores no setor e, como tal, defende que é necessário implementar medidas como a reorientação da formação profissional e desenvolver a formação nesta atividade, atraindo os jovens e oferecendo a possibilidade de reconversão dos desempregados que foram mais afetados pela crise gerada pela pandemia. «Em abril estavam registados nos centros de emprego do IEFP um total de 284.407 desempregados, dos quais 27.325 são oriundos do setor», apostando ainda numa outra vertente que é a de mobilidade transnacional da mão-de-obra, considerada essencial para «assegurar às empresas uma gestão mais dinâmica dos seus recursos humanos».
Todos estes obstáculos levam Pedro Ferraz da Costa a garantir ao nosso jornal «que o PRR vai correr muito mal», enquanto Pedro Braz Teixeira diz que é «um sinal preocupante».
Também o presidente da AIP, José Eduardo Carvalho, reconhece que a falta de mão-de-obra é neste momento um fator crítico para as empresas. Ainda assim, lembra que «em todas as conjunturas há e haverá sempre fatores que condicionam a gestão empresarial», acrescentando que os «maiores condicionalismos de execução do PRR estão na oferta e não na procura».
Questionado se Portugal poderá perder dinheiro, Ferraz da Costa diz apenas que essa é «a ótica que os portugueses olham para isso» e, apesar de admitir que essa verba pode servir para «fazer coisas úteis» garante que «o programa foi mal gizado em termos dos grandes objetivos, em que que houve uma grande aposta do Governo em usar tudo no Estado», admitindo no entanto, que «apesar de tudo também podiam fazer coisas positivas no Estado, mas para isso é preciso que passem a executar melhor».
Outra dor de cabeça na agilização do PRR poderá ser o próprio ministro da Economia. «A minha grande dúvida é sobre a capacidade de António Costa Silva, pode ter desenhado o plano, mas desenhou mal, sem falar que não tem experiência nenhuma na área da administração pública e daí dizer que há uma elevada probabilidade de correr mal», antevê o economista. E vai mais longe: «A agravar temos um primeiro-ministro que normalmente não muda ministros que estejam sob ataque e como Costa Silva vai de certeza ficar sob ataque vamos ter este ministro da Economia durante muito tempo».
Atrasos nos pagamentos
As críticas não ficam por aqui. Pedro Braz Teixeira lembra também que 100% dos projetos já foram contratados, o que no seu entender, mostra «que houve uma pressa excessiva em contratar, o que significa que poderá não ter havido uma seleção muito rigorosa em relação à qualidade dos projetos e para passar aos pagamentos é outro problema, quando são esses valores que vão depois estimular a economia».
Também em matéria de pagamentos, o diretor do Gabinete de Estudos do Fórum para a Competitividade dá cartão vermelho. «Dos pagamentos que já foram feitos, 93% foram para o setor publico». E dá números: até à data foram realizados pagamentos de 1.639 milhões de euros (9,8% do total), dos quais destinaram-se apenas 499 milhões a beneficiários diretos e finais (3% do total, mas 93,6% pagos a entidades do setor público), «enquanto os restantes 1111 milhões ainda estão em trânsito em beneficiários intermediários». Uma balança que está ainda mais desequilibrada do que o previsto, uma vez que a ideia era o Estado ficar com 75% do total do PRR, indo o restante para as empresas. «Neste momento, em termos de pagamentos está a ir tudo o Estado», garante ao nosso jornal.
Atrasos que vão ao encontro das contas feitas pelo presidente da AEP. «Segundo os últimos dados do último boletim de monitorização do PRR disponível, do montante total já aprovado a beneficiários diretos e finais (4.575 milhões de euros), apenas 0,5% corresponde às empresas. Por outro lado, é bem visível a baixa execução ao nível dos pagamentos. O total pago a beneficiários diretos e finais corresponde a apenas 15% do montante global aprovado (693 milhões de euros) e no caso das empresas a proporção é ainda mais baixa (apenas 1,7% do total aprovado)», refere Luís Miguel Ribeiro ao Nascer do SOL. «O balanço mostra de forma muito clara que este PRR beneficia muito pouco as empresas».
Além da taxa baixa de execução, em termos de pagamentos, em particular às empresas, o próprio Governo «reconhece implicitamente que as coisas não estão a correr bem e que há riscos claros de execução, tendo adotado recentemente medidas para tentar contrariar, como é o caso da medida prevista no recente Decreto-Lei n.º 36/2022, de 20 de maio, que estabelece um regime excecional e temporário no âmbito do aumento dos preços com impacto em contratos públicos, ou ainda duas medidas da Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2022».
No documento aprovado na passada sexta-feira está prevista a transferência do montante equivalente ao IVA efetivamente suportado no âmbito de projetos financiados exclusivamente pelo PRR realizados pela administração central; pelas autarquias locais e pelas entidades intermunicipais; pelas instituições de ensino superior; pelo sistema nacional de ciência e tecnologia e pelo terceiro setor. «Tal significa que as empresas estão excluídas, o que a AEP considera discriminatório», condena, acrescentando que, «no caso das autarquias está ainda previsto um empréstimo extraordinário junto do Fundo de Apoio Municipal para financiar despesa corrente, uma medida que visa assegurar a liquidez necessária aos municípios para a execução do PRR. A AEP não encontra no Orçamento uma medida semelhante para as empresas».
E vai mais longe: «Assumindo que o Governo está em dia com o cumprimento de objetivos e não poderia ter já recebido mais tranches da Comissão, as principais deficiências na execução do valor já recebido do PRR são evidenciadas pela proporção de 45% de valores ainda não pagos e pelos 34% pagos a beneficiários intermediários e ainda não canalizados para os beneficiários finais. Tal significa que apenas 21% do montante já recebido por Portugal foi atribuído a beneficiários diretos e finais, os reais destinatários».
‘Não está fácil’
Para o presidente da AIP, se o plano for entendido como um «programa de estímulos para combater uma recessão, então tem de ser rapidamente executado», o que «não está fácil». Como tal, entende que a capacidade de execução era o principal fator de risco do plano. «Pretendia-se uma execução eficiente e eficaz. O desafio era enorme», comenta, lembrando ainda que «dado o peso que o CAPEX público [despesas de capital] tem no PRR, temos necessidade de triplicar a capacidade de contratar da administração pública e local».
E interroga: «Como se consegue isto sem flexibilizar os procedimentos da contratação pública? É difícil. E quando for necessário utilizar os instrumentos de ordenamento territorial? Conseguiremos os consensos para flexibilizar a tramitação? Duvido. Além disso, todos sabemos que 10/15% dos contratos públicos transitam para os tribunais devido à excessiva litigância que existe sobre os mesmos».
Face a este cenário, reconhece que se criou um ambiente político e uma pressão mediática nada propícia à discussão e reflexão deste tema. «Está a dar-se muita atenção aos processos de acompanhamento e controlo do plano, e pouco ou nada sobre o que se deve fazer para facilitar a execução do mesmo», e dá como exemplo o facto de, até agora, os grupos de trabalho que foram criados em diversos ministérios privilegiarem o controlo e a monitorização do plano e não a sua execução.
«O Dec. Lei 53/2021, simplificou os procedimentos de responsabilização e aumentou a competência dos diretores gerais e órgãos de gestão equiparados na autorização de despesas. Mas não sei se será suficiente. A administração pública não tem proteção nem incentivos para a tomada de riscos que a execução do PRR exige», diz ao nosso jornal.
Ainda assim, José Eduardo Carvalho lembra que o «Governo apostou todas as suas fichas neste plano», acrescentando que «é um programa que pretendia aliviar a pressão sobre as contas públicas, estimulando a economia. Creio que existe plena consciência de que se o plano falhar, em primeiro lugar na execução e depois nos efeitos esperados na economia, o Governo ficará em ‘maus lençóis’». E como tal, acredita que vai haver um esforço para ultrapassar os entraves que bloqueiam a execução.
Flexibilização?
O presidente da AIP acredita que, além do reforço financeiro do programa também possa existir uma prorrogação do prazo de execução. «Acho que neste momento é imperioso. Todos sabemos que dos quatro principais fatores de mudança estrutural da economia portuguesa só a capitalização e a inovação serão alavancadas pelo PRR. O reforço da capacidade exportadora e o redimensionamento empresarial não estão abrangidos. Haverá mudança de flexibilização de aplicação do programa, e nessa reformulação temos de incluir o redimensionamento empresarial».
E lembra que um país que tem apena 6.654 médias empresas (1,5% das sociedades comerciais) terá muita dificuldade em crescer. «Dificilmente terá grande evolução na competitividade, na base exportadora, na inovação, na qualidade de gestão, e pagará melhores salários. Ainda não percebi porque é que os principais instrumentos de política pública negligenciam um dos principais fatores que mais contribuíram para não termos crescido nos últimos 20 anos», conclui.
Já o presidente da AEP lembra que o argumento que tem sido usado é que não é possível mudar a estrutura do PRR. No entanto, admite que a realidade mostra que não é bem assim. E dá como exemplo, o caso de Espanha, «onde está em curso uma alteração significativa do seu plano de recuperação para integrar novos projetos estratégicos que visam incentivar a produção de chips e semicondutores, com uma dotação que ultrapassa os 12 mil milhões de euros».
Luís Miguel Ribeiro recorda ainda o estudo da AEP, em que propôs que as empresas – cuja alocação direta no PRR é de apenas cerca de um terço – recebam 100% das subvenções reprogramadas do PRR, tendo em conta não só os riscos de execução, mas sobretudo os desafios que se colocam à economia portuguesa.
Mais otimista está Pedro Braz Teixeira: considera que o aumento dos custos é um problema transversal a toda a Europa e, como tal, por parte da União Europeia há consciência que há uma dificuldade generalizada, ou seja, não é apenas um problema português, e que poderá levar a reequacionar fazer alguns ajustamentos. «Por outro lado, por Portugal ser das economias que cresceu menos, vai ter acesso a mais de cerca de 1500 milhões de euros de PRR. Há uma margem para ajustamentos».
Senhor que se segue
A nomeação de Pedro Dominguinhos para presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do Plano de Recuperação e Resiliência, sucedendo a António Costa Silva após designação do primeiro-ministro, não parece animar o tecido empresarial. O presidente da AIP não acredita que esta nomeação vá dinamizar a execução do programa, defendendo que o «impacto mediático da sua nomeação é mais um sinal da importância que se dá ao controlo e ao acompanhamento, e não à execução do programa». E lembra que o principal gestor do programa, Fernando Alfaiate, «quase que passa despercebido», apesar de reconhecer que tem «um perfil low que é o mais recomendado para o desempenho destas funções», afirmando que «é um excelente técnico, tem uma enorme responsabilidade na execução do programa, anda por todo o país a dinamizar o programa, mas as luzes estão centradas no acompanhamento. Está tudo enviesado».
Quanto ao afastamento de Nelson de Souza desta área da política pública, José Eduardo Carvalho considera que «é uma perda para o país». E vai mais longe: «Não há muita gente em Portugal a perceber disto. E as experiências que temos tido, de pessoas com reputados currículos de escolas anglo-saxónicas, que foram investidas nestas funções públicas, foram um desastre».
Na expectativa está o presidente da AEP, que defende que «mais importante do que a pessoa em concreto escolhida para determinado cargo público são as políticas exercidas em prol do desenvolvimento do país. Estamos em crer que tal acontecerá no caso referido», conclui.