Por João Sena
Nasceu em Faro há 65 anos, é economista de formação, mas está totalmente comprometido com o papel de presidente da Federação Internacional de Motociclismo (FIM). As motos sempre fizeram parte da sua vida. Começou a correr em motocrosse em abril de 1974, duas semanas antes do 25 de abril. Mudou-se para Paris, foi estudar para a Sorbonne, mas não esqueceu as corridas. Disputou as 24 Horas Le Mans em moto e marcou presença nos Grandes Prémios de Espanha, França e Venezuela na categoria 250 cc, não se qualificou para a corrida e percebeu que jamais seria piloto profissional.
Converteu-se à arte da escrita. Foi jornalista do semanário Autosport e correspondente de várias publicações estrangeiras. Mais tarde, fundou a Federação Nacional de Motociclismo, criou a Confederação do Desporto, foi juiz no Tribunal Arbitral do Desporto, fez parte do Comité Olímpico de Portugal e foi presidente do Autódromo do Estoril, entre outras ocupações. Ao mesmo tempo que desenvolvia a sua atividade em Portugal, ia trabalhando a nível internacional. Entrou na FIM em 1991 para a Comissão de Promoção e, em 1995, chegou a vice-presidente. Nos últimos 30 anos, fez um percurso no motociclismo desportivo e associativo e construiu um currículo com projeção internacional. Chegou ao topo da pirâmide com a eleição para presidente da FIM em 2018 – é o único português a dirigir uma federação desportiva internacional. O seu trabalho é reconhecido além-fronteiras, mas passa despercebido no nosso país, algo que não o surpreende, como disse ao Nascer do SOL, numa entrevista que toca todas as áreas do mundo das duas rodas.
Foi reeleito para novo mandato no final do ano passado. Na declaração de vitória, colocou grande ênfase no trabalho de equipa. Afinal, quem é o presidente da FIM?
Tenho uma vida profissional dupla: como economista ligado à área das energias renováveis e presidente da FIM. Não mudei nada desde que sou presidente, e tenho imenso orgulho em ser o único presidente português de uma grande federação internacional. Tento ter uma intervenção completamente diferente da dos meus antecessores e de grande proximidade. Conheço os pilotos do mundial um a um e tenho grandes amigos no paddock.
As pessoas sabem que há um português a desempenhar um alto cargo a nível internacional?
Só quem segue o MotoGP sabe quem eu sou. É normal, os portugueses só consideram alguém quando essa pessoa morre ou, então, se for estrangeiro. Temos imensas qualidades como povo, adoro ser português e estou sempre a puxar pelo país, mas temos um defeito que é a inveja e isso faz com que as pessoas sejam ignoradas.
Quais foram os maiores desafios que o presidente da FIM encontrou?
Quando cheguei à federação, fiz uma autêntica revolução. Havia sete diretores e ficaram apenas dois, porque a FIM estava completamente estagnada e a fazer o que não devia e a não fazer o que devia. Mudou a cultura, tornou-se mais transparente e as coisas começaram a funcionar na perfeição. Depois veio a pandemia, não entrámos em pânico, mas vivemos tempos duros e difíceis que permitiram solidificar a incrível equipa com quem trabalho. Tivemos uma atitude proativa e o motociclismo foi dos poucos desportos em todo o mundo que manteve a atividade. Quatro meses depois do primeiro confinamento estávamos a organizar provas e, com exceção do todo-o-terreno, a concluir os campeonatos mundiais, tudo muito centrado na Europa, com menos provas e muitas adaptações.
Foi reeleito com 99% dos votos, isso deixou-o satisfeito?
Sem dúvida. Na última eleição votaram 100 federações e houve um único ‘Não’, que foi do Iraque. Antes da votação, o presidente iraquiano quis apresentar a sua candidatura a uma vice-presidência e eu disse-lhe que era uma federação muito recente e não tinha trabalho feito, ele retirou a candidatura e votou contra mim. Fui candidato único, mas o sistema de votação tem a possibilidade do ‘Não’ e só é eleito quem tiver mais de 50 % dos votos a favor.
A FIM reúne 119 federações nacionais, tem 13 comissões e organiza mais de 150 campeonatos em todo o mundo. Em 2024 comemora 120 anos, vai ter um logotipo diferente, um novo espaço para convidados nas corridas, uma sede nova e um livro evocativo da data. Quais são os grandes objetivos da federação?
Um dos meus grandes objetivos era ter 120 federações no ano em que a FIM fizesse 120 anos. E vamos conseguir isso, pois entrou o Senegal e a Albânia também vai aderir, vamos fazer o pleno da Europa. Em relação à pergunta, a FIM é uma instituição que tem como acionistas as federações de 119 países e que está dividida em seis regiões continentais: Europa, Ásia, África, Oceania, América do Norte e América Latina.
O que faz concretamente a FIM?
A federação está dividida em 13 comissões específicas que trabalham a área desportiva, técnica, jurídica, médica, inclusão das mulheres, sustentabilidade, turismo, mobilidade e homologação de acessórios, como os capacetes e os airbags dos fatos dos pilotos. Há três pilares fundamentais que são: o desporto, legislamos e aplicamos as leis, o turismo, que está a registar um grande crescimento, e a mobilidade, uma área menos mediática relacionada com a legislação referente às motos, onde temos um representante nas Nações Unidas e um gabinete em Bruxelas. O nosso modelo de negócio é diferente do que faz a FIA [Federação Internacional do Automóvel]. Desenvolvemos os campeonatos e vendemos os direitos comerciais e de televisão. Além disso, temos as receitas das licenças desportivas e uma área de marketing.
Na sede, próximo de Genebra, trabalham 50 pessoas, com total paridade entre homens e mulheres, e temos mais 50 pessoas que se deslocam às provas em todo o mundo. Existem mais 300 elementos considerados profissionais não pagos que vão às corridas, aos quais só pagamos as despesas. No total, trabalho com 400 pessoas de 55 nacionalidades, e no capital humano da FIM há vários portugueses com posições de destaque em várias comissões. Todos os fins de semana há, em média, cinco ou seis provas a contar para os mundiais, o que exige grande dedicação de todos, eu vou estar presente em 45 eventos ao longo do ano, ando de ‘família’ em ‘família’. É nessas alturas que tenho mais trabalho. Estar no pódio a entregar troféus aos pilotos é o mais fácil, mas antes há inúmeras reuniões.
O MotoGP é o core business da FIM e um dos desportos com mais audiência em todo o mundo.O Grande Prémio de Portugal está garantido por quantos anos?
Não está garantido! A prova pode aparecer no calendário de 2024, mas não há garantia de que se realize. É necessário que o Estado cumpra os compromissos financeiros com a Dorna, e isso ainda não aconteceu. É muito difícil assinar um contrato por vários anos como fazem outros circuitos, porque em Portugal não se conseguem as garantias financeiras para realizar a prova. O promotor gosta do circuito de Portimão, mas é necessário que haja garantias. Não há nenhum país que organize um grande prémio sem o apoio do Estado. O Governo tem interesse no evento, mas não oficializa essa intenção, nem sequer existe uma carta de conforto a manifestar interesse em manter a prova.
Há o risco de Portugal deixar de ter o MotoGP por questões financeiras?
Sim, existe. Só espero que não falte o apoio do Estado a Portugal, porque nesse caso ficamos sem o grande prémio. Se o Governo quer continuar a ter um evento que traz um retorno para o país largamente superior ao investimento é bom que não deixe fugir a prova. Há muitos países interessados em ter o MotoGP, como são os casos do Brasil, México, Cazaquistão e vários países da Ásia. A Arábia Saudita vai entrar em 2024, fizeram um circuito provisório só para garantir um lugar no calendário, e depois vão construir um circuito que dizem ser o melhor do mundo.
O que representa para Portugal ter um piloto no topo do motociclismo?
Representa muito. O Miguel Oliveira tem uma excelente imagem internacional e foi considerado várias vezes o desportista mais popular no nosso país, é uma pessoa de quem os portugueses gostam e que é visto como um exemplo. Têm surgido vários jovens a querer seguir o caminho do Miguel, só que isso é bastante difícil, pois o campo de recrutamento é bastante limitado, nada tem a ver com Espanha que é a maior potência do motociclismo. Há, no entanto, um miúdo de 11 anos, o Pedro Matos, que poderá seguir as pisadas do Miguel, é muito bom e tem estado a fazer grandes corridas em Espanha com pilotos mais velhos. O Ivo Lopes é outro piloto com enorme talento e lidera o campeonato de velocidade espanhol.
É realista pensar que Miguel Oliveira pode ser campeão do mundo em MotoGP?
O Miguel é dos poucos pilotos que já ganhou cinco grandes prémios. Na minha opinião, tem talento para ser campeão do mundo, mas é preciso que se conjungem uma série de fatores. É necessário ter uma moto que lhe permita vencer corridas, uma estrutura muito forte e alguma sorte. Este ano tem sido bastante infeliz e passou ao lado de um início de época fantástico. Estou convencido que iria fazer grandes resultados.
O mundial de motociclismo começou em 1949, consegue imaginar o que seriam as corridas nessa altura?
Era tudo completamente diferente. As provas decorriam em circuitos que não tinham as mínimas condições. Hoje em dias as corridas são extremamente seguras. Os pilotos só podem competir com fatos de competição com airbags e capacetes homologados pela FIM e os critérios de homologação desse equipamento são bastante rigorosos. A segurança das pistas também aumentou com a introdução dos airfence, é raríssimo um piloto magoar-se numa queda, as últimas fatalidades só aconteceram porque os pilotos foram atingidos por outra moto, e temos a mesma direção de corrida em todos os grandes prémios, pelo que todas as decisões são tomadas por pessoas extremamente conhecedoras e competentes. Mesmo assim, tem havido fatalidades. Depois do acidente mortal de um jovem aumentámos a idade mínima para poder correr e reduzimos as grelhas de partida nas categorias inferiores.
O sente o presidente da FIM quando acontece uma fatalidade?
Uma tristeza enorme. O último piloto a morrer foi o luso-suíço Jason Dupasquier, de 19 anos, era um bom piloto e supersimpático. Fui ao funeral e, dentro do possível, tentei confortar a família, mas chocou-me profundamente.
O motociclismo de competição é um desporto de alto risco. Faz sentido haver corridas com a Ilha de Man, onde já morreram quase três centenas de pilotos?
Sou completamente contra esse tipo de provas. A FIM criou uma apólice mundial e nenhum piloto pode correr sem ter esse seguro, mas excluímos dessa apólice a prova na Ilha de Man, a Northwest 200 e Macau, essas provas não fazem parte da FIM. Em minha opinião não se pode correr de moto naquelas condições, mas há muita gente que gosta. Tenho o testemunho da viúva de um piloto inglês que me disse que estava orgulhosa porque o marido morreu a fazer aquilo de que gostava. Essa é a mentalidade das centenas de pilotos que passam por essa corrida. Em 116 anos já morreram quase 300 pilotos, mas eles não querem saber do risco que correm.
O início de temporada tem sido bastante acidentado, com vários pilotos a magoarem-se. O que tem a dizer o presidente?
O que tem acontecido preocupa-me imenso, mas as corridas de MotoGP não são para meninos, estamos a falar de um desporto que é viril, não pode é ser perigoso pela atitude dos pilotos. O MotoGP é, na minha opinião, o melhor espetáculo do desporto motorizado pela emoção e competitividade que tem. Por ser tão competitivo, a diferença entre ganhar uma corrida ou ter um mau resultado é mínima. Temos que ser muito rigorosos na aplicação das penalizações, mas sem estragar o espetáculo. Importa dizer que os stewards punem em função da manobra e não em função das consequências, é assim em todos os desportos. Como português, fiquei bastante triste com o que tem acontecido ao Miguel Oliveira neste início de época.
Quem decide as penalizações aos pilotos?
Este ano temos três stewards permanentes, funcionam como o VAR no futebol, que são muito rigorosos para dissuadir os pilotos de fazer manobras perigosas, é aí que residem as grandes polémicas sobre se determinadas manobras deviam ou não ser penalizadas, como foi o caso do acidente do Marc Márquez com o Miguel Oliveira. Isso é o nosso futebol. Posso dizer que passamos diretivas rigorosas para que não facilitem em termos de segurança. Como presidente recebo muitas cartas de reclamação, mas nunca me imiscuí no trabalho dos stewards, pois eles têm imagens que mais ninguém tem e podem decidir corretamente. Não é uma tarefa fácil e, por vezes, também se enganam.
Alguns pilotos estão a pisa a linha vermelha em matéria de segurança?
Fizemos recentemente uma reunião com os stewards e pilotos onde foram passadas imagens das manobras mais controversas, que deram origem a penalizações, e perguntámos aos pilotos o que fariam se fossem eles a decidir. Cerca de 60% decidiam da mesma forma dos stewards, e os outros dividiram-se entre os que queriam medidas mais severas e os que acharam que era tudo incidentes de corrida e que não era para fazer nada.
As motos da principal categoria atingem os 360 km/h e têm cerca de 300 cv, são números medonhos. O que vai acontecer no futuro?
Estamos a atingir o limite dos limites e temos, forçosamente, de baixar a potência e a velocidade. As motos de competição já têm asas para melhorar a aerodinâmica e aumentar a velocidade, sou completamente contra isso, só que as motos à venda nos stands também já têm asas… Há poucas semanas, o responsável da Brembo disse-me que tem grande dificuldade em fazer travões em carbono para parar as atuais motos de grande prémio. A FIM e o promotor do campeonato, a Dorna, estão a trabalhar num regulamento técnico com vista a reduzir as performances das motos de MotoGP a partir de 2027, e ao mesmo tempo manter a diferença para as outras categorias. Temos também de trabalhar na performance dos pneus. Estou convencido de que para o público é irrelevante se uma volta demora mais ou menos um segundo. Começámos por baixar as performances das Superbikes e das motos de resistência queremos que sejam parecidas com os modelos de série.
Carmelo Ezpeleta, CEO da Dorna, e Stefano Domenicali, CEO da Fórmula 1, estiveram reunidos. Há alguma coisa que o MotoGP possa ir buscar à Fórmula 1 para aumentar o espetáculo?
A Fórmula 1 copia aquilo que considera bom do MotoGP e nós fazemos o mesmo em relação à Fórmula 1. Há uma colaboração aberta entre as duas disciplinas. Como desporto o MotoGP é melhor, como espetáculo a Fórmula é superior, as corridas de motos têm pouco glamour e temos de melhorar e experiência do adepto. A Dorna tem a noção de que está atrasada relativamente ao trabalho que se faz à volta das corridas e contratou um responsável de marketing americano, que vem da NBA, e tem uma visão diferente do desporto.
Vai avançar o campeonato do mundo feminino?
Sim. Atualmente emitimos dez mil licenças e cerca de 15% são mulheres, e queremos encorajar a diversidade e inclusão de pilotos do sexo feminino nas corridas. Já existe um mundial de motocrosse, de enduro e de trial feminino e, em 2024, teremos uma competição monomarca destinada a senhoras integrada no programa das Superbikes, que será disputada pelas melhores que competem no campeonato europeu, americano, japonês e sul-americano. Ainda estamos em negociação para escolher a marca, mas será uma moto entre a Supersport 300 e a Supersport 600. Acredito que vai ser um sucesso pelas equipas e patrocinadores que já manifestaram interesse em participar.
A sustentabilidade é uma preocupação para a FIM?
Queremos estar na linha da frente no que diz respeito à transição energética, apoiada sobretudo em novos combustíveis. Temos o campeonato MotoE, integrado no programa dos Grandes Prémios, que é uma boa competição e que oferece excelentes corridas. A partir de 2024 vai ser usado no MotoGP combustível ecofluel, que praticamente não tem emissões. As grandes petrolíferas estão a desenvolver esse tipo de combustível, o principal problema é o preço e não a solução. Os atuais combustíveis sintéticos [com 40 % de produtos renováveis] custam cerca de sete euros o litro. A Fórmula 1 está a desenvolver um combustível 100 % sintético que custa 100 euros o litro. Quando se começar a produzir em maior quantidade os preços vão baixar e isso facilitará a sua utilização. Estamos também a trabalhar na redução do ruído dos motores. A partir de 2025, o limite sonoro das motos de competição de todo-o-terreno vai ser reduzido em três decibéis, foi uma guerra de dois anos com os construtores japoneses. Na área industrial, a mobilidade urbana elétrica funciona na perfeição e as scooters elétricas já fazem parte do passado. Onde há mais dificuldade é nas motos de turismo devido à autonomia e peso. Não existe uma tecnologia de baterias que permita às motos de maior cilindrada serem uma opção, nesse sentido ainda estamos longe de a motorização elétrica ser a solução fora das cidades para as motos de grande cilindrada.
O que tem feito a FIM a nível da prevenção rodoviária?
Esse é um tema da comissão de mobilidade. Colaboramos com as associações industriais ligadas ao setor e apresentamos sugestões aos construtores como, por exemplo, a obrigatoriedade de utilização de ABS nas motos. Todas as inovações em termos de segurança rodoviária são feitas em colaboração com a federação.
O motociclista é mais responsável do que o automobilista em Portugal?
Não sei responder a essa pergunta. Tenho a noção de que há demasiados acidentes com motos em Portugal, esses acidentes acontecem normalmente entre uma moto e um carro e por falta de visibilidade da moto. É muito comum um automobilista mudar de faixa na altura em que vai a passar uma moto. As pessoas devem olhar para os espelhos retrovisores enquanto conduzem. O ambiente rodoviário tem de proporcionar uma convivência segura entre os veículos de duas e quatro rodas, o que nem sempre acontece.