Por Luís Menezes Leitão
O que está em causa na proposta de alteração do Estatuto da Ordem dos Advogados é o maior ataque à advocacia desde a fundação da Ordem através do Decreto 11.715, de 12 de Junho de 1926. Efectivamente, desde essa data que se encontra estabelecido que os actos próprios da advocacia só podem ser praticados por Advogado inscrito na Ordem dos Advogados, dependendo essa inscrição da realização de um estágio com aprovação (art. 11º).
A definição dos actos próprios dos advogados (e dos solicitadores) consta hoje do art. 1º, nºs 5 e 6 da Lei 49/2004, de 24 de Agosto, que considera como tais o exercício do mandato forense e a consulta jurídica, e ainda a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, a negociação tendente à cobrança de créditos, e o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários. Na proposta de alteração a essa lei, apresentada pelo Ministério da Justiça, os actos próprios da advocacia passam a ser apenas o mandato forense e a reclamação dos atos administrativos ou tributários, passando todos os demais actos a poder ser praticados por outras entidades (novos arts. 1º-A a 1º-C). Designadamente qualquer licenciado em Direito pode passar a prestar consulta jurídica e a elaborar contratos, sem precisar de se inscrever na Ordem dos Advogados. E a negociação da cobrança de créditos pode passar a ser feita por empresas de cobranças difíceis, com enorme risco de lesão dos cidadãos desprotegidos.
O resultado desta iniciativa legislativa é a desregulação absoluta da advocacia e um ataque sem precedentes à Ordem dos Advogados. A proposta não altera o art. 1º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que define a Ordem dos Advogados como «a Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia». Na prática, no entanto, transforma a Ordem dos Advogados apenas numa associação de profissionais forenses.
Na verdade, quem exercer qualquer forma de Advocacia, que não seja o patrocínio forense, deixa de precisar de estar inscrito na Ordem dos Advogados. Ora, sabendo-se que a inscrição na Ordem envolve toda uma série de custos, como quotas, contribuições para a previdência, organização de escritório adequado, fiscalização disciplinar, etc., é de prever, não só que grande parte dos futuros licenciados em Direito deixe de se inscrever na Ordem dos Advogados, como também que grande parte dos actuais Advogados abandone a Ordem dos Advogados. Tal não só representará a destruição da Ordem dos Advogados, tal como hoje a conhecemos, como também implicará o colapso imediato do sistema de previdência próprio dos Advogados.
Neste quadro, a proposta do Governo de estabelecer uma remuneração mínima de 950 euros para os estagiários, a suportar pelos seus patronos, é absolutamente risível. Salienta-se que o Governo não fez qualquer revisão da tabela dos Advogados que trabalham no acesso ao direito desde 2004, estando as suas remunerações num nível baixíssimo. Corre-se por isso o risco de haver Advogados que não consigam ganhar no sistema de acesso ao direito tanto como o que seriam obrigados a pagar aos seus estagiários. Como hoje em dia já é difícil conseguir patronos que aceitem formar estagiários, imagine-se o que será a partir do momento em que tal envolva esse tipo de custos. O resultado será, pura e simplesmente, o desaparecimento dos estágios, o que só contribuirá ainda mais para que a Advocacia em Portugal passe a ser essencialmente feita fora da Ordem dos Advogados, enfraquecendo-se assim brutalmente a mesma enquanto instituição representativa dos Advogados.
O Governo de António Costa tem-se caracterizado pelo exercício do poder absoluto em Portugal, contando para isso com um Presidente compreensivo, um Parlamento totalmente controlado, com uma oposição fraquíssima, e um Tribunal Constitucional complacente. A Ordem dos Advogados, antes de ter entrado na sua actual deriva sindical, era das poucas instituições independentes, com competência para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, que existia em Portugal. Por isso o Governo decidiu, não apenas colocá-la sob vigilância de controleiros estranhos à profissão, como também proceder ao seu efectivo desmantelamento, terminando com a inscrição obrigatória na Ordem de grande parte dos Advogados. Como um ataque à Ordem dos Advogados é um ataque ao Estado de Direito, o mesmo fica em sério risco em Portugal.