por Pedro da Costa Mendes
Sócio Partner de CEREJEIRA NAMORA MARINHO FALCÃO SOCIEDADE DE ADVOGADOS
Anos de intensas sessões de advogado negociador entre facções com interesses opostos, e de tentativas de ceder salvando a face, e de vitórias “sem derramamento de sangue”, o que no campo jurídico significa manter o oponente com vontade de colaborar no futuro, ensinaram-me que, nessa esfera mas também na política internacional, há que analisar bem o que se nos depara pela frente.
Vêm estas palavras a propósito do que se passou no fim de semana de São João, com as manobras militares da PMC Wagner (PMC vem de “Private Military Company”) e o desenlace que, até agora, se conhece: retirada total das tropas já a caminho de Moscovo (algumas), exílio do seu chefe na Bielorrússia e incorporação das tropas Wagner, não participantes no “passeio até Rostov”, no Exército (antes, Vermelho).
Começo já por sublinhar que não acompanho a maioria dos comentadores quando estes dizem que o que aconteceu foi um golpe militar e que o resultado enfraqueceu o Kremlin e significa uma incapacidade de Putin e vaticinam uma perda para o Exército Russo.
Vejamos:
Houve incapacidade de Putin mas não é nem de agora nem piorou com o golpe ou com a resolução do golpe.
A incapacidade de Putin (não incompetência) resulta da decisão política de criar e dotar um grupo privado militar com os recursos e missão política para crescer tanto como foi permitido à PMC Wagner crescer, com a dependência que a Federação Russa começou a sentir. Tal criação também não terá sido obra do acaso, mas da estratégia há anos desenvolvida por Putin de dividir os centros de poder no Estado Russo, não deixando uns ter demasiado poder sobre os outros centros de poder. Assim foi com a PMC Wagner que, além de desempenhar missões nas quais o Estado Russo não poderia estar política e oficialmente presente (missões em África e no Médio Oriente), também serviu para contrabalançar o poder dos Generais do Exército (antes, Vermelho).
Acontece, porém, que a PMC Wagner cresceu demais com a necessidades extra provocadas pela defesa do Exército ucraniano, armado e apoiado pelo Ocidente. Era, então, necessário controlar esse corpo de mercenários, já com uma dimensão, experiência e armamento considerável e que vinham de uma vitória sofrida em Bakhmut. Decerto que não custa a crer que quisessem, consequentemente, capitalizar essa vitória exigindo melhores condições financeiras e novos contratos.
Como se crescessem demasiado (e cresceram), houve reacção de Putin, tendo sido, então, comunicada à PMC Wagner a obrigatoriedade de incorporação das suas tropas no Ministério da Defesa, leia-se, Exército (antes, Vermelho).
Como tantos corpos armados anteriormente, a PMC Wagner contra-reagiu. E contra-reagiu da única forma que unidades militares sabem: demonstrou força contra o seu “dono”, para assim sustentar a suas reivindicações. Não era um golpe de estado nem eles queriam derrubar Putin, mas apenas parar a sua incorporação no Exército e retomar a obtenção de contratos com o Estado russo. Estavam a negociar.
Até aqui, não há grande novidade.
Onde eu me separo da maioria dos comentadores é na leitura do desenlace (até agora) dessa atitude da PMC Wagner, desafiante do poder instalado.
O perdão às unidades da PMC Wagner, o exílio de Prigozhin e a aparente continuação do “business as usual”, sem derramamento de sangue.
Eu considero que esse desenlace sem confrontação, longe de atestar uma fragilidade de Putin ou do Exército (antes, Vermelho), significa, sim, uma prova de força e de vitalidade do mesmo Putin e do Exército.
Perante uma ameaça de um corpo armado com uns 25000 homens, perfilados numa só estrada, ao Governo russo e ao Exército terá bastado proferir a ameaça de aniquilação total da mesma. Aniquilação total que observadores militares não lhes custa a crer que fosse efectiva e num curto espaço de tempo, tal a vantagem estratégica e poderio do Exército e Força Aérea russas no seu “hinterland”. Mas, isso, até Prigozhin, o “Cozinheiro do Kremlin”, já saberia. Ele tentou o “Bluff”, apostou na acentuação das divisões internas, mas falhou: perante uma escolha entre controlar um exército de mercenários cada vez maior e dar poder a um Exército habituado a cadeia hierárquica e “estatizado”, Putin escolheu, por ora, este último.
Mas, e aí está mais uma vez, um reflexo da força ainda actual de Putin, a decisão não foi de eliminar fisicamente os “traidores”. Para já, não se iria oferecer um “banho de sangue” àqueles que, ainda assim, lutaram sob as cores da Federação Russa. Depois, esse próprio corpo militar é ainda uma força respeitável e que será certamente necessária em outras missões, para o Estado russo, seja na Ucrânia seja em outro teatro de operações. Importa, portanto, reciclá-los e voltar a usá-los conforme for conveniente. Sob uma nova chefia.
Os que não participaram no “passeio a Rostov” integram o Exército (algo que já era perseguido pelo Governo russo, como uma forma de controlar esse poderio privado). Os que participaram não serão processados, mas também nada foi publicamente anunciado sobre o futuro imediato. Para mim, continuarão ao dispor.
A PCM Wagner irá ser desmantelada, mas continuará a operar sob outra designação, ao serviço do Estado russo, já mais controlada. Prigozhin, esse, se escapar com vida, nunca mais terá o mesmo poder.
Putin livra-se de Prigozhin, um actor descabelado (literalmente) cuja utilidade se havia extinguido, mantém a capacidade militar da PCM Wagner, controlando-a e reforça o poder das cúpulas militares do Exército (antes, Vermelho). A único aspecto ainda a ver é se Sergei Kuzhugetovich Shoigu (ministro da Defesa, entidade que tutela o Exército) e Valery Vasilyevich Gerasimov (actual Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas) também serão substituídos. Mas duvida-se… afinal, saíram ganhadores.
Foi um belo drama musical, este. Digno de Wilhelm Richard Wagner. Ao mais puro estilo russo, de nada ser verdadeiramente o que parece.