A Dança dos Não Eleitos: Uma Reflexão Sobre as Eleições Espanholas

No último domingo, a Espanha foi palco de um espetáculo político que, paradoxalmente, coroou todos os participantes como vencedores. A dança dos não eleitos, seguida pela escolha dos eleitos, tornou-se um ritual que, embora pareça peculiar, é uma realidade inegável na política contemporânea.

por Octávio Rebelo da Costa

O Partido Popular, de orientação conservadora, emergiu como o vencedor das eleições gerais deste domingo na Espanha, com o seu líder, Alberto Feijóo, reivindicando o direito de formar governo. No entanto, o pleito terminou sem uma definição clara, para formar um governo, são necessários 176 assentos no Parlamento Espanhol, algo que nem o partido no governo, o socialista PSOE, nem a direita tradicional do PP conseguiram alcançar. Nenhum dos blocos políticos possui maioria automática, o que impede o vencedor de assumir o poder de forma imediata. Tal resultado suscita reflexões pertinentes acerca do fenómeno do voto útil e das suas implicações no panorama político contemporâneo. Os socialistas do PSOE, liderados pelo presidente do governo, Pedro Sánchez, resistem às reivindicações de Feijóo. No entanto, se desejarem continuar a governar, terão que fazer concessões significativas. Um dos partidos desta provável coligação, apelidada de "Frankenstein" no país vizinho, é o Bildu. Este partido é o herdeiro político da ETA, que nunca condenou expressamente os mais de 800 homicídios cometidos pela organização terrorista. Também o mediático “juntos Pela Catalunha”, um partido independentista catalão liderado por Carles Puigdemont, que está exilado na Bélgica após ter sido condenado em Espanha pelos crimes de sedição, peculato e desobediência.

Com o desaparecimento do Cidadãos (um partido liberal que chegou a vencer as eleições autonômicas na Catalunha em 2017 e elegeu 57 deputados nas eleições legislativas de abril de 2019), e com o Podemos reduzido à irrelevância, os dois maiores blocos políticos, conservador e socialista, somam 64,6% dos votos. O bipartidarismo sai, portanto, reforçado das urnas. No entanto, esse reforço não vem acompanhado de pontes, apenas de trincheiras, uma vez que os dois partidos parecem cada vez mais reféns dos extremos em uma era propícia ao radicalismo.

Ou seja, os cenários que se apresentam agora apontam para negociações complexas e uma incerteza que se deve prolongar. Ao estabelecer um paralelo com a experiência portuguesa da "geringonça", é possível vislumbrar semelhanças no que tange à formação de alianças políticas inusitadas.

A votação foi convocada após o governo socialista de Pedro Sánchez (PSOE) sofrer uma dura derrota nas eleições regionais, há dois meses, contra a direita. No entanto, a decisão da direita tradicional (PP) de firmar acordos com o Vox teve um custo alto. Em regiões como a Catalunha, o resultado foi um claro "não" à entrada da dita extrema-direita no governo central. O PP passou a ser notado como incoerente ao procurar o voto do centro enquanto fechava acordos com os apelidados de “herdeiros do franquismo”.

A polarização começa a intensificar-se cada vez mais:

– Yolanda Díaz, vice-presidente do governo e líder da aliança de esquerda, foi a primeira a mencionar os riscos da extrema-direita. "Havia muitas pessoas preocupadas neste país. Mas agora podemos dormir mais tranquilos. A democracia prevaleceu", afirmou.

– Do outro lado, no seu estilo característico, Santiago Abascal, alertou que Sánchez poderá governar agora com a ajuda de "comunistas, terroristas e golpistas". Ele também acusou as sondagens de serem "manipuladas", o que levou o seu grupo a desmobilizar-se devido a supostos resultados positivos que poderiam vir a obter nas urnas.

A lógica do voto útil, que tem sido a bússola orientadora de muitos eleitores, parece ter saído frustrada. O medo de partidos como o Vox em Espanha ou o Chega em Portugal, longe de afastá-los do poder, tem servido para fortalecer tanto a narrativa desses partidos (medo, antissistema) como o próprio socialismo que tão veementemente criticam. Afinal, o medo é um excelente motivador, e quando se trata de política, o medo do desconhecido pode ser um poderoso aliado. Mas, como chegamos a este ponto? Como é que a política se tornou um jogo de xadrez onde os peões são movidos não pela vontade do povo, mas pelo medo do que poderia acontecer se o "outro lado" ganhasse? A resposta é complexa e multifacetada, mas uma coisa é certa: a política tornou-se um jogo de sombras, onde os não eleitos exercem tanto ou mais poder do que os eleitos. Eles são os espectros que assombram as urnas, os fantasmas que sussurram nos ouvidos dos eleitores, os monstros que se escondem debaixo da cama da democracia. No entanto, não podemos ignorar o papel que nós, os eleitores, desempenhamos neste jogo. Somos nós que conferimos poder aos não eleitos, alimentando-os com nossos medos e incertezas. Somos nós que, ao escolher o "menor dos males", acabamos por perpetuar um sistema que favorece a polarização e a divisão. As eleições espanholas do último domingo são um exemplo perfeito dessa dinâmica. Um filme sobeja e estranhamente familiar aqui no vizinho lusitano. Todos ganharam, mas ao mesmo tempo, todos perderam (especialmente os espanhóis). Ganhou a esquerda, alimentada pelo medo da direita. Ganhou a direita, que se alimenta do medo que provoca da esquerda. E perdeu a Espanha, que continua presa num ciclo de medo e galvanização. Mas, porventura, o maior perdedor de todos sejamos nós, os eleitores. Perdemos a oportunidade de escolher com base na esperança e não no medo. Perdemos a oportunidade de quebrar o ciclo e escolher nossos líderes, não com base no que tememos, mas no que aspiramos. Estamos a perder a Democracia. É notável a tendência dos eleitores em optar por alternativas consideradas menos desfavoráveis, em detrimento de propostas e projetos mais ambiciosos. Tal comportamento, embora compreensível, revela uma dinâmica eleitoral pautada pelo medo e pela incerteza, em vez de uma análise criteriosa e fundamentada das opções disponíveis.

O estado atual da democracia é indecoroso, revelando uma lacuna entre o ideal democrático e a realidade política. A lógica do voto útil e a escolha do menos mau em detrimento do bom são reflexos dessa lacuna. Para fortalecer a democracia, é necessário que os eleitores se libertem do medo e da pressão do voto útil, e passem a votar com base nas suas convicções e aspirações para o país. A democracia deve ser um sistema que permita a escolha dos líderes que verdadeiramente representam os interesses e valores de todos, em vez de ser uma escolha baseada no medo do desconhecido. Somente quando os eleitores se sentirem capacitados para escolher o melhor, em vez de apenas o menos mau, é que a democracia poderá cumprir plenamente seu propósito de representação e governança justa.

 Urge, portanto, que nos libertemos do medo. Votar com base na esperança e confiança no futuro. Se nenhum partido apresenta um futuro promissor, que surjam novos partidos e novas lideranças. A democracia não se resume apenas a votar, mas também a ser eleito. Somente assim poderemos quebrar esse ciclo vicioso, onde o medo do outro acaba invariavelmente por nos aprisionar. Escravos livres ditadores da nossa própria sentença, assistimos impávidos e formatados à dança dos não eleitos, que prossegue compassada, mas talvez seja tempo de mudar a música. Talvez seja tempo de escolhermos com base na esperança e não no medo. Talvez seja tempo de escolhermos os nossos líderes, não pelos monstros que tememos, mas pelos sonhos que temos. E, quem sabe, então poderemos dizer que, nas eleições, todos saímos vitoriosos.