Mudar a vida foi sempre o maior ensejo de Mário Cesariny, rejeitando as coisas servis, as leis morais, propondo uma fusão dos contrários, e resgatar os dias, “não trabalhar em escritórios nem aturar o patrão nojento”, ir compondo uma barricada aos poucos, gravando nas pedras elementos de fantasia. Faltar a todas as chamadas, deixando livre a noite para abrir outras portas, e isto, claro, nunca por nunca a sós, mas entre essas fileiras que não podem dispensar nenhum dos seus anjos, todos com o mesmo propósito: desencadear a guerra. Ele soube abastecer as linhas, andar da retaguarda para a frente infundindo um propósito que tinha o seu alvo muito para além do real quotidiano, manejando as armas à disposição e dominando-as como poucos, reconhecendo sempre que o ponto central, primordial, passa por procurar nos outros o espelho único do seu amor, mesmo se então este se encontrava já consideravelmente estilhaçado. Nunca deixou de opor o absoluto ao funcional, o exaltante ao cómodo, sendo essa a grande diferença do seu carácter, e aquilo que tornava a força da sua visão poética algo que provocava um susto e um evidente temor nos adversários. A diferença que havia nele, como lembrou Vitor Silva Tavares, prende-se decisivamente com o nunca ter deixado margem para uma ruptura entre vida e obra. “Onde quer que aparecesse era a aura do poeta. Um príncipe num país de medíocres, um homem magnífico.”
Numa das evocações que lhe dedicou, Helder Macedo recorda como às tantas circulou no Café Gelo uma folha onde alguém copiara à mão um poema em que Sophia teria esquissado um impressivo retrato de um ser mefistofélico, isto depois de, segundo reza a lenda, ter visto Cesariny certa madrugada, “fantasticamente encostado a uma parede na estação de Santa Apolónia, a observar à distância a partida do Sud-Express para Paris”. Seja ou não verdade, Macedo adianta que o que mais importa é que isso tenha parecido plausível àqueles que receptaram o poema em letra tremida e com o título “Semi-Rimbaud”, incluído em 1958 na colectânea Mar Novo. Caiu nas mesas daquele café como um aviso, e provocou essa risada que pede alívio perante a noção de que, por vezes, há um entre nós que se destaca como um mito: “Seu rosto é uma caverna/ Onde frios ventos cantam/ Passa rasgando o luar/ E desesperando a noite// Pelas ruas oblíquas da cidade/ Em madrugadas duvidosas/ Constrói o mal com gestos cautelosos/ E sonha a inversão total das coisas// Constrói o mal com gestos rigorosos/ Lúcido de vício e de noitada/ Íntegro como um poema/ Completo lógico sem falha// A aurora desenha o seu rosto com os dedos/ As suas órbitas iguais às das caveiras/ Seu rosto voluntário e inventado/ Magro de solidão verde de intensa/ Vontade de negar e não ceder// De caminhar de mão dada com o nojo/ De ser um espectro para terror dos vivos/ E uma acusação escrita nas paredes.”
Se não foi inspirado por Cesariny, o certo é que depois da aproximação ser feita não é mais possível ignorar a ferocíssima semelhança, a justeza de palavras que captam a força de aparição, esses traços que em qualquer fotografia dele exprimem a dignidade terrível de um ser que viu na inspiração uma tremenda exigência. Um poeta que se cumpriu naquele acerto de gestos brutais iluminados pelo desespero, trazendo em si uma revolta capaz de se exprimir por meio de uma beleza convulsiva, a de um homem que se vê forçado a gritar o seu direito a existir, e que passa num secreto tumulto, desfigurando a expressão de uma sociedade que adora esconder-se por trás de máscaras. Esta mesma sociedade que não podia senão odiar as naturezas intempestivas, que lhe rasgam o cenário sufocante, abalam os alicerces, e trazem o mal e sua colérica linhagem, escrevem mais alto, fazendo com que a língua seja um chão sujeito ao tremor de um verbo imoderado.
Há ainda os poetas capazes de inventar espaços subtraídos ao tempo, por onde fazem passar o fogo como um sangue por entre os vitrais esquecidos, alimentando a vida e deixando o seu testemunho nas paredes, de forma a que o arrepio atravesse a cidade. Sendo um monstro de sensibilidade, o grito de Cesariny produzia uma harmonia mais profunda, sustida através de um alto grau de invenção, em que todo o gozo e todas as humilhações eram sublimadas, sendo da sua própria vida que retirava a receita para o paraíso como para o inferno, lançando cada seixo de tal modo que fosse saltitando nas águas até atingir o horizonte no olho.
Quanto às condições para se mudar de vida, o certo é que a liberdade ainda não chega. Está ainda verde, é uma noção demasiado vaga ou então é já mais outra operação nostálgica. Só quando a liberdade se impõe e se torna realidade, quando a poesia se une à vida é que se dá uma espécie de sobressalto na tessitura das coisas, e é esse o princípio, o fulgor, a mais extrema exigência que levou Mário Cesariny a definir a poesia como “a técnica mais proibida da mágica mais procurada”. Mas há um preço a pagar se não nos vamos ficar pelo falar fiado. Antes de tudo, o importante é saber do que nos libertamos, contra o quê, quem, e quantos? A libertação implica já um confronto, enquanto a liberdade pode andar metida em qualquer boca. Do outro lado da liberdade temos de pesar as servidões a que nos submetemos. E até do lirismo às tantas o poeta precisa libertar-se: pois até para se descobrir o próprio nome é preciso uma série de provas: “O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível para que seja impossível encontrá-lo/ sem de alguma maneira enveredar pela estrada/ Da Coragem/ porque a este respeito – e creio que digo bem – nenhuma garantia de leitura grátis se oferece ao viandante”… Eis esse grau de exigência extremo que assinala a linha onde estamos de novo no “tempo em que a poesia estava ligada à vida”. E vincar isto é o que basta para fazer corar e deixar desconfortável o beatério que acorre às missas do que anda por aí a mostrar-se como poesia.
Daí também o perigo dos balanços e das efemérides, de se ficar por aí, e causar ainda mais embaraço, deixar que persista no ar esse cheiro a fenol, ou o que levou o poeta a notar como “tudo isto cheira a trapo e ervanária/ tudo isto cheira a hera para estátuas líricas”. Uma paisagem cómoda, resfolegando, afundada em si sem ver mais nada, com as aves passando por cima, “trôpegas de tanta música grátis”. E tudo soma e dá no que desde sempre se sabe: esse anoitecer geral que convida a morte a rondar por perto. Mas se queremos chamar para o nosso convívio uma presença inquietante que lutará até ao fim para impedir que dela se faça um fantasma, se o que se pretende é seguir o rastro caligráfico daquela “alada mão que resume a experiência” do contacto com o mundo na solidão em que nos encontramos, convém desde logo enxotar a mosca que nos tem tratado do serviço à mesa.
O que poderia servir-nos outra razão seria “um canto telegráfico”, que fosse não apenas uma reconstrução depurada das coisas, mas essa capacidade de produzir sínteses estarrecedoras, criar aberturas, alcançar uma música mais poderosa que o próprio caos, um ritmo que suspenda todas as certezas, e nos integre no pleno fulgor genesíaco da grande poesia: “Este passo encontrado que nos guia entre as mesas/ este chegar tão tarde às pontes levadiças/ para uma exposição de rosas no nevoeiro/ este eterno trabalho de dadores de sangue/ é o que mais nos defende do massacre/ vá recomecemos/ do ocasional gemido do fantasma eriçado/ as notas principais// pendurar numa árvore o rio capitoso de tantas lágrimas/ descer de chapéu na cabeça até ao patamar/ dizer para sempre aos cabelos da noite/ que basta descalçar lentamente um sapato/ que basta ter achado atrás do travesseiro o relâmpago azul do contacto com as mãos/ ou ter ido seguro por lençóis de linho a devastar de arbustos solidões do teu corpo (…)”.
Eis o ritmo que falta, um gozo de derrubar paredes, e a lógica passa por nos esquivarmos aos enredos de uma literatura ou de uma cultura que, com as suas promessas de prestígio e legitimação, apenas produz fantasmas. Trata-se de rumar em direcção ao desconhecido, já que de outro modo não escapamos a esse “vento de cadáver refrescado/ produzido em quantidades industriais”, nem escapamos deste tempo que nos sabe há muito como “um domingo monstruoso”, e acabamos como os emparedados, desfeitos, desgraçados: “Fazem de mortos para escapar aos vivos// Fazem de vivos e fazem mal// Entretanto no fundo de olhos inteligentes/ agitam-se oceanos de saliva”.
E veja-se a extraordinária força oracular, com a infidelidade característica dos deuses e que faz o encanto desta voz: “Nós vivemos há muito nesta nova espécie de caverna bruxa/ alta pelo silêncio que nos veste/ real pela erosão de um sol peculiar que ilumina o recinto intermitentemente/ um sofá que não é para aqui chamado/ também podia servir de modelo à ampla descrição do fenómeno a luz/ que nos excede e emite nos liberta e sufoca/ depois há um que entra a perguntar o que é/ e tudo assume um pouco o ar policial/ dos cascos em fuga pela realidade fora// Merecemos o nosso passo de bichos do dilúvio/ merecemos que nos ceguem todos os dias/ merecemos estar sozinhos rodeados de prédios (…)”
No país onde o poeta é só até à plume, este sítio onde se vive de castigo, entregue às excelências de um lirismo de obrigação, resta ficar a ver partir e chegar os “cadáveres à tona de água”, em mais outra recriação das Descobertas. De cada vez que nos chamam, aí está mais outro monumento pronto a ser descerrado: “Na coluna marítima espelhada/ a fria a lacónica data inexpressiva” ou, em alternativa, “a chave de meter medo/ à porta que se não tem”. Dito isto, que esperança nos resta? “Apetece contar uma história tão estranha, que as pessoas saiam aos tropeções de casa/ apetece anunciar com voz fanhosa/ cronologicamente cruelmente/ todas as horas do pasmo/ todos os dias do calendário do medo/ todas as terças-feiras da angústia de haver rosas/ todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol (…)”
Cesariny foi até ao fim desse olhar lançado para a noite galáctica e que é o mais longe que se pode estar da tediosa mosca que nos azucrina. Ele tinha o gozo da imprecação e da irrisão capaz de provocar esses abalos na pele das coisas, tinha aquele puro instinto de um grande génio satírico, o que vem pôr tudo a nu, e rir sempre com mais dentes do que se possa imaginar. Tinha a ciência das imagens exorbitantes que nos atingem como punhaladas atrozes, tinha a colheita das suas tentativas não para acertar, mas para falhar de acordo com aquele desgoverno radiante que era só dele, capaz de erros esplendorosos uns atrás dos outros. Dizia ele que “o lirismo é um epigonismo da prisão de ventre”. E logo se precavia contra o ricochete: “Se alguma vez fui lírico — mas dizem-me que sim — é porque estava com essa prisão.”
O riso era para lançar à cara da realidade, de toda essa impostura, do fervor desses que a exaltam como uma obra acabada, quando a parte que interessa é o estar ainda tudo por fazer. Quando o batalhão da moral vinha acenando com os vícios e os pecados, “talvez a imagem de uma cidade em chamas onde o excesso de circulação de revoltos, na zona dos quartéis, atira para o céu todos os pesos médios”, talvez isso tenha servido para sinalizar a condição invulgaríssima de um ser que não aceitava ser substituído nem rendido por outro qualquer.
Caíra na cidade um corpo feito de um desejo que em si mesmo era motivo de escândalo e a década mais dura da sua vida, e que esteve na base da sua marginalização social, ocorreu depois de uma indiscrição nocturna: teria posto a mão no sexo de alguém que, nuns lavabos, estava ali como isco, e agarrou sem saber o mar inteiro. Cesariny foi preso pela “polícia dos costumes”, e tinha de pagar uma caução para sair da cadeia. Não tinha o dinheiro e por isso mandou um recado a António Pedro, que, tendo passado uns tempos por Londres, dizendo-se um surrealista, parecia alguém com um espírito aberto, mas que ficou todo contente por pagar a caução e ir depois “contar o sucedido a quem o quisesse ou não quisesse ouvir”, lembra Helder Macedo. E adianta: “afinal a polícia dos costumes tinha sido mais discreta.” Às tantas foi determinado que Cesariny não podia sair de casa sem estar acompanhado, que não podia frequentar bares ou ser visto na presença de homossexuais, tinha de ter um trabalho e levantar-se cedo, aturar o que os outros aturam porque julgam que isso lhes confere um propósito e até uma grande dignidade: “Ah! Heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!” Não assim ele, que se destinou à perseguição obstinada de um alvo em infatigável movimento, afinando em si a ânsia de destruição e reconstrução intermináveis do mundo. Isto bastava para arranjar sarilhos num país que ganhou raízes no mais amodorrado real, e que, nesse hábito de se submeter a todas as formas de vigilância e censura, mesmo se não tem para isso uma polícia qualquer, assume uma dieta estética e uma moral tacanha que empurra as verdadeiras expressões poéticas para a clandestinidade. Ora, na poesia, através dela, Cesariny buscou o outro lado da vida, esse esforço das palavras para figurarem o inaudito, e mostrou como o idioma adere às partes mais vulneráveis da matéria pela sintaxe que pode sempre ser refeita de forma a capturar esses corpos inexpiáveis e um autêntico rumor do mundo.
Não há tempo para a descrição minuciosa de como procedeu enfim à autópsia do país, ao dar-se conta de que vivia prisioneiro de uma nação cadaverosa. Mas é certo que foram as circunstâncias específicas daquele homem com a sua “impenitente singularidade de proscrito” (Helder Macedo) que fizeram dele esse cantante bárbaro, alguém que se entregou com todas as horas e com cada gesto à combustão amorosa, transformando-se num adversário formidável e num negativo perfeito do país. Por isso a explosão teve uma duração limitada e não sobreviveu intacta a partir do momento em que estavam reunidas as condições para uma certa “normalização celebratória da sua anterior rebeldia”, sendo isto o que, no entender de Helder Macedo, levou a que a sua musa vingativa tenha acabado por lhe “pôr os cornos”, como ele gostava de dizer. Macedo admite, no entanto, que talvez as coisas se tenham passado ao contrário, e que possa ter sido ele quem pôs os cornos à sua musa rebelde. Basta ver como no fim a reabilitação foi de tal ordem que deu para morrer com um milhão de euros no banco, e como as celebrações da efeméride estão nas mãos desse empório do tráfico de conveniências fantasmais.
Seja como for, ficou-nos a imagem do Poeta “exorcismando no seu atelier nos astros”, ficaram-nos “as páginas do livro jovialmente aberto”, esse livro que nos devolve ao desejo, à urgência de um corpo que não se deixa demover por essas confusões que aos outros lhes faz que seja neste ou naquele buraco, pois não é por aí que se mede nem a tesão nem o prazer ou a combinação entre um estremeção íntimo e um abalo cósmico de um encontro que torna sagrado cada detalhe do mundo físico, deixando marcas ao nível mais íntimo, até na memória das células, e nesse sopro mágico que se transmitirá aos vindouros. E então ele serve-nos como um guia na linha de Ovídio quando nos diz: “Procurem o buraco próprio/ Da vossa saliência/ E a saliência da vossa reentrância/ Não tenham medo/ Comam/ O leque é extraordinário”. E aqueles que só apreendem a dimensão mais mesquinha das coisas, aqueles que até para as poucas saídas ou entradas em comunicação com o infinito se excluem com o receio do que os outros possam pensar, de que lhes possa parecer mal, vale a pena seguir este diálogo: “Então tu gostas mesmo”/ “Gosto de quê”/ “De um homem”/ Não lhe deste resposta/ Que resposta haveria para dar/ Era um jogo de aves do paraíso num céu iluminado a caixas de fósforos”.
Aí está o cadáver aberto, visto e revisto até à desintegração, até ficar claro que não há muito mais que se possa retirar dali, “nada a ver com o grito do sol no horizonte quando uma ave subitamente sangra”. E então, que nos resta além de algumas memórias na pele de outro? “De um colchão carbonizado pouco fica/ Erguia-se limpava o braço azul deixava ficar tudo como estava/ Mas dele até ao pó e às sombras dos sapatos/ quantas revoluções perpetuadas/ Ali onde a parede não faz chão/ E diz então que a catedral era em baixo/ Não adivinho como nos encontrámos/ Perguntava isto e aquilo respondia rindo/ Ora eu que ria não sei bem/ Entrámos numa escada/ Mas a alvura dos muros era contra vós/ Com as costas das mãos toquei-lhe no sexo fortemente arqueado dentro da roupa/ Comecei a tremer como uma vara verde/ Puxou-me o outro braço e apoiou-se pesou sobre mim como se eu fosse a base do universo/ Ouvi o trabalhar de um relógio de pulso na minha nuca/ Que som para a eternidade”…
Nunca nem antes nem depois se escreveu com tamanho ardor e pregnância sobre a paixão, sobre essa expansão da intimidade que de súbito se acha no eixo do universo na duração do acto sexual. É preciso entregar-se-lhe com o maior dos riscos, com a sociedade contra, querendo proibi-lo. Não há urgência maior, e talvez isso explique porque estamos a perder o desejo, uma vez que “Já não custa nada o amor/ Já não custa nada a experiência/ Nada o beijo na boca”.
A morte é esse beijo que já não sabe a nada. Ficamos frios. Mas seria bom falarmos sobre isso antes que chegue a nossa vez. “Quiseras abordar a estranha nau gelada/ com seu porão sem voz, seus mastros de brilhantes”… Eis dois versos receptados por Cesariny de Gomes Leal, e relembre-se que a actividade de Cesariny foi sempre um esforço de leitura crítica, recorte e reconstrução permanente da tradição lírica portuguesa, um esforço de a pesar na intimidade para desencadear esse efeito de dissonância fabulosa capaz de virar tudo do avesso.
Num dos mais penetrantes textos críticos que vieram a lume no balanço deste centenário (já serviu para alguma coisa), António Cândido Franco lembra como, face ao fundo matricial do evangelho poético português, esse inclinado sempre para o regime lírico, todos esses arranjos florais de beleza estética, Mário Cesariny surge como “o menos esperado dos poetas da poesia portuguesa do seu tempo”. E aqui é preciso ver a sua obra como impugnação de uma literatura ansiosa por ser prestável e vir assumir funções decorativas, e é aí que entra este espantoso amotinado, capaz de fazer da nau gelada um navio de espelhos, desdobrando-se nesses dez mil capitães todos com o mesmo rosto, a mesma cinta escura, o mesmo grau e posto, de forma a que, quando um se revolta, haja dez mil insurrectos. Isso sim era uma visão que vale perseguir uma vida inteira. E Cândido Franco exalta “essa contra lírica corrosiva e sem vergonha”, notando que “nenhum outro fintou tão bem as esperanças que uma linha sólida de quase dez séculos de evolução cristalizara em torno da concepção do canto lírico – ninguém como ele se entreteve com tanto gosto e proveito a rasgar o papel selado e lacrado dessa sacrossanta tradição oficiosa”.
Por isso, para Cesariny os cento e tantos heterónimos que se chegou a contabilizar nessa infindável operação dos nossos paleontólogos na arca de Fernando Pessoa ainda eram poucos, ainda era uma revolução de trazer por casa, era mais outro elenco para uma peça de teatro do que propriamente um vigoroso exemplo para se transformar alguma coisa… “e então sim contra os vidros/ o amor soluça tempestade/ deuses cegos assomam às janelas e tomam/ sobre o odioso chão que ladra e ladra/ uma aurora de cães afivela o teu pulso/ e a cobardia responde à cobardia/ como a coragem responde à coragem// Um pouco de certo modo por toda a parte/ há homens desmaiados ou simplesmente mortos// O AMOR REDIME DO MUNDO diziam eles// mas onde está o mundo senão aqui?
E aquele magnífico confronto que se dá entre ele a repercussão de Pessoa, exprime a desolação depois de uma paixão intensa ser estragada pela aleivosia de uma consagração miserável, à medida que aquele era proposto como “o maior de todos”, a besta redutora, no país que, afinal, sempre detestou os poetas, e se serve da exaltação de uma figura máxima para conseguir que se calem os demais.
Como assinalou Joaquim Manuel Magalhães, a existência de poetas maiores não transforma nenhum deles no maior. “Pobre duma literatura que soubesse qual era o seu maior poeta. O facto de querermos que Camões ou Pascoaes, por exemplo, sejam os nossos maiores poetas – pelo menos até agora – é um acto masoquista de auto-extinção.” E mesmo quando se finge honrar e celebrar aquele, na verdade outra coisa não se faz além de tentar cozinhá-lo e digeri-lo segundo um mesmo gosto desgostante, uma compreensão limitada e oportunista, para retirar dele determinados efeitos que permitam instituir um culto paroquial qualquer. Tratando-se sempre de uma questão de ir em romaria, exibindo os santos da casa, “entre nós, tal cortejo tem fim obrigatório na cor dos olhos de Fernando Pessoa a cair morto de bêbado em casa de cada um”, nota Cesariny.
Adianta também que o espinho que sentiu enterrar-se-lhe na carne não vinha do Pessoa em si ou sequer da irradiação da sua obra, que provocou nele um evidente êxtase, como fica claro muito cedo em “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos”. Insistiu que não tinha nada contra ele, o que tinha era tudo contra a catedral em que fora transformado, servindo a toda essa sangria académica… “E porquê? Por saloiada. Porque foi publicado em francês, e pegou enormemente. Com os estrangeiros de braços abertos para o Pessoa, choveram bolsas e estudos universitários. Parece que não há mais poetas em Portugal.”
Insurgia-se contra essa veneração que não é outra coisa além de uma forma de necrofagia: esta dos jubileus, das efemérides, das evocações póstumas que servem para esmagar e humilhar os vivos. “É uma espécie de emprego público”, denunciava Cesariny, “já que dá bolsas, viagens, congressos, pronto… foi escolhido para vítima.” E depois vem a forma de viciar a própria figura, domesticá-la, fazer dela esse caldo Knorr que toma a rebelião de um ser que funda uma “espécie de sociedade literária unipessoal” (Bernardo Pinto de Almeida) de modo a gerar o dinamismo entre figuras de inteligência e que se influenciam entre si, num país onde ninguém se lia nem levava em conta. Ora, depois de Pessoa ter atacado de todas as maneiras o provincianismo luso, fazendo de tudo para escapar a essa asfixia, logo que o apanharam sem pulso fizeram-lhe a folha, vingaram-se colocando-o no centro de mais um sebastianismo para embalar este “país menino”, faminto de encarnações míticas.
Assim, a heteronímia é tratada como um teatrinho da dispersão do eu, passando ao lado do que havia de mais instigante e perturbador naquele gesto. “O Fernando Pessoa fez uma coisa muito bonita, pelo menos em poesia escrita, a poesia que nos legou, que foi destruir o mito da personalidade, que é um mito eminentemente ocidental – o culto da personalidade, da pessoa (que quer dizer máscara) – e ele, como não tinha mais à mão, tinha-se a ele mesmo, realmente cindiu-se, como numa explosão atómica. Parece que há agora pessoas interessadas em recuperar a personalidade do Pessoa, a unidade dos heterónimos; ele não tem nada com isso. A operação cirúrgica (as palavras são dele), ele fê-la nele próprio, destruindo… Ele não criou um novo objecto; destruir não é construir. Destruir é realizar-se outro, dizia o António Maria Lisboa. Fernando Pessoa no fundo é o antipoeta por excelência. Ele é um puro racionalista, a não ser quando se exalta e assina Álvaro de Campos.”
Depois a verdade é que o fascínio que provocou aos leitores portugueses essa espécie de sumo que passa por juntar água e servir em muitos copos a partir de um concentrado de influências ou extractos da vanguarda que sepultava as antigas distinções clássicas da arte, esse fascínio por Álvaro de Campos vem precisamente de um gosto por produtos de contrafacção, não o artigo original mas essa composição que não passa de traduções folgadas para deslumbrar os provincianos.
“O mal que Pessoa fez à literatura é imenso. Aquela coisa ‘inspirada’, caudalosa, criou uma legião de poetastros que acreditam na inspiração metafísica. Até Drummond ficou assim no fim da vida”, vincava João Cabral de Melo Neto, dando uma grande vassourada nesse mito consolador, desbragado e meio alcoólico, típico de um país periférico e traumatizado, agarrando-se à mundividência ilusionista de um autor que poucas vezes foi outra coisa além de um talentoso surripiador de influências estrangeiras com um ardor provinciano, no sentido mais barato do termo.
E se este heterónimo pegou, também se entende como depois é quase impossível desfazer o equívoco uma vez que toda a gente que gosta de se algarismar e exprimir segundo o consenso, não abre mão já dos santos que elegeu, e quando tem um poeta como o maior sentem como intolerável a petulância de qualquer voz crítica que desdenhe desse afã. Mas é quase impossível fazer um ponto de ordem depois da procissão ir já no adro, e quando para tremerem basta-lhes molhar o pé nalgum espelho de água, esquecendo o exame implacável que outros, mesmo os mais amáveis fizeram. Como Eugénio de Andrade, que entendeu perfeitamente que as iguarias pessoanas tinham acabado enfiadas num frasco como uma espécie de ketchup metafísico luso, que ia com tudo, como molho em série, igual ao ovo que antes vinha sempre a cavalo. "A moda é o Pessoa", notava ele, e prosseguia: "coitado: dá para tudo;/ e a culpa é dele, com aquela comovente/ incapacidade para ser ele próprio./ De nada lhe serviu ter dito e redito/ que a fama era para as actrizes./ Que vocação de carneiro têm as maiorias:/ não há fúfia universitária ou machão/ fardado que não diga que a pátria/ é a língua ou a puta que os pariu."
E aí está, e na regular função que cabe aos nossos espíritos que se têm por sensíveis não cabe outra coisa senão fazer respeitar a cartilha, os altos valores, essa receita de alma que se guia por interpostos versos, exaltados mais naquele ritmo de lengalenga supersticiosa. Daí que lhes provoque uma imensa irritação haver alguém que puxe este ou aquele arcanjo dessa hierarquia e lhe vá ao cu em público, sendo certo que, não se sabendo dos anjos o sexo, sempre se pode aproveitar esse furo que é comum a todos e tantas alegrias tem dado a quem pouco se importa com o ideal de reprodução.
Mas os nossos burocratas do sentido, que não são nunca capazes de surpreender aquele ambiente sobrenatural da poesia a menos que venha autenticado com um dos nomes que foram dados na escola ou que lhes surgem repetidamente na televisão, a estes avilta-os tremendamente que se possa pôr em causa uma dessas unanimidades patrioteiras, impotentes no que toca à capacidade decisiva de apreciar por si seja o que for. Também no que respeita à poesia gostam de emprenhar pelo ouvido, tão afeiçoados como estão ao regime do coro de igreja, sem audácia para ir ver se as coisas rimam internamente com o que se tornou hábito dizer por aí.
Ora, já Pascoaes havia lamentado como depois da morte de Pessoa tinha vindo a ganhar expressão “uma nova literatura de signo universitário”, essa que é a “enseada amena do maior dos conformismos”. E note-se como, se não há entre os tais que tornaram necessário um esforço de “desratização” de Fernando Pessoa um só que saiba admirar e apreciar um autor que não tenha sido já carimbado pelo regime do gosto geral, e parece sempre que depois dele não se deu outro passo, são acometidos de um ânimo policiesco de andar em cima de quem quer que assobie destoando, ferindo a cantiguinha escolar. Temos assim um poeta feito porta-estandarte, símbolo desse país ignorado e que admira tudo sempre à boleia. Mas mesmo esta consagração só é possível traindo a força de denúncia de tantos dos seus escritos, pois só a ignorância do que escreveu autoriza essas formas de consumo deste morto exemplar.
Pois foi para promover de forma apoteótica um exorcismo do lugar institucional de Pessoa que Cesariny imaginou uma magnífica cena orgiástica envolvendo os heterónimos daquele: “O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar.// O Campos/ Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia/ Ficavam-lhe os olhos brancos/ E não falava, mordia. O Alberto/ É mais por causa da fotografia/ Das árvores altas nos montes perto/ Quando passam rapazes/ O que nem sempre sucedia.// O Fernando o seu maior desejo desde adulto/ (Mas já na tenra idade lhe provia)/ Era ver os héteros a foder uns com os outros/ Pela seguinte ordem e teoria:/ O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão/ Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-/ -Se no Alberto até à base/ E com algum incómodo o Alberto erguia/ Nos pulsos a ordem da Kabalia/ Tentando passá-la ao Álvaro/ Que enroscado no Search mordia mordia/ E a mais não dava atenção./ O Search tentava/ Apanhar o membro do Bernardo/ Que crescia sem parança direcção espaço/ E era o que mais avultava na dança/ Das pernas do maço de heteronomia/ A que aliás o Search era um pouco emprestado/ Como de ajuda externa (de janela ao lado)/ Àquela endemonia/ Hoje em dia moderna e caso arrumado.// Formado o quadrado/ Era quando o Aleyster Crowley aparecia./ «Iô Pan! Iô Pã!», dizia,/ E era felatio para todos/ e pão de ló molhado em malvasia.”
Além da violenta paródia a que sujeitou o movimento de consagração levado a cabo pelas viúvas de um poeta que se calhar até morreu virgem, Cesariny denuncia ainda a forma como Pessoa serviu de espelho a esta nação processional, que retira o pouco ânimo que lhe resta indo e vindo de enterros, e deplorou que a sua morte tenha funcionado como a oportunidade que o país esperava para fazer valer essa cultura lastimosa que sai sempre de negro para ir coçar-se nalgum túmulo. E Pessoa deixou tantos túmulos por aí espalhados que ficou mais fácil que nunca ir em classe turística e deitar-se neles para se fingir uma módica dose de arrepio metafísico. “Fernando Pessoa morrerá em 1935, amorosamente sufocado pelos seus heterónimos, mas também pelo torpor que agradadamente a sociedade portuguesa refaz”, sublinha Cesariny.
Já Fernando Cabral Martins, no livro de ensaios com o título “Mário Cesariny e O Virgem Negra”, esclarece que o que satiriza Cesariny é a heteronímia concebida como uma ‘dança de eus’, essa teoria crítica que resulta de uma improvável conjunção de espiritismo e freudismo e que a presença muito ajudou a instituir.” Por isso mesmo, entende que toda a extensão do confronto que Mário Cesariny encena com Pessoa termina com a “desratização” de um poeta enredado nas malhas da Academia e queimado pela publicidade.
Na verdade, isto é só uma parte do problema, e talvez nem seja o essencial desse confronto, pois a diferença entre um e outro reflecte-se nessa exemplaridade diabólica do poeta que recusa ser transformado num símbolo, essa força de rejeição que não chegamos a encontrar em Pessoa e que marca decisivamente a postura crítica e poética de Cesariny. Pois se Pessoa se tornou um vulto inescapável da cultura portuguesa, uma prodigiosa assombração, que não parava de produzir sobressaltos, provando ser um morto muitíssimo rendoso para aqueles que souberam servir-se da sua ausência para essas “especulações editoriais, críticas e outras” (Herberto Helder), a verdade é que Pessoa raras vezes foi encarado como um mestre. Mesmo Sophia, que com ele manteve um diálogo cada vez mais intenso, sinalizando uma certa devoção, a certa altura via nele o “viúvo de si mesmo”. E Jorge de Sena, depois de ter sido o grande responsável da entusiástica recepção da poesia de Pessoa nas décadas de 40 e 50, caracterizou-o como o “homem que nunca foi”, um autor que se esquivou da vida para se enterrar na obra.
É natural por isso que uma geração que buscou reivindicar a poesia para além da utilidade pública, e sobretudo desses deveres de representação oficial que caracterizam o ponto culminante da forma amorfa de recepção dos poetas entre nós, e que passa por fazer deles artigos no sonolento museu da língua, além de marionetas do poder, tenha acabado por virar as costas a esse ser feito de literatura e nada mais. “Nesta linha de autonomia feroz”, diz-nos Cabral Martins, “o nome do poeta deve permanecer livre de ligações a qualquer entidade social e politicamente marcada, que promova a sua petrificação em estátua”.
A Cesariny custava-lhe ver ignorados "os invisíveis anjos guardadores do trabalho que não pode ser adiado”, havendo um retrocesso depois de um significativo avanço, remetendo tudo para “esta linguagem de lamento, esta linha de rogo que frustra a voz, este verso exposto a mil vagares na almofada branca de uma página mil vezes decapitada na praça pública". E se é certo que Pessoa não podia prever nem tem culpa daquilo que fizeram dele, falta ainda perceber essa diferença crucial em que Cesariny sempre insistiu, e que se prende com a própria ideia que se faz do papel que tem a literatura na vida e não ao contrário: “Sai-se para a literatura quando é da literatura que é preciso sair. Os maias prescreviam toda a forma escrita, considerada atentatória do funcionamento do mundo. Nós expelimos literatura de vibração.// Encontrar a verdade em corpo e em alma é o único fim da boca humana, o único trabalho que deve prosseguir.”