Evocação a Natália

Na poesia, no ensaio, no romance, no teatro ou na investigação literária pôs sempre a marca do seu génio.

Veio daquela ‘Ilha desconhecida que pelos caminhos do sonho se mostra a quem a buscar’. O tempo de criança recorda-o na magia dos seus versos:

‘A minha infância de ainda haver sereias

é um chegar ao mundo antes dos astros’

Com a força telúrica que lhe vem da sua terra natal, de S. Miguel, está com paixão em todas as lutas por manhãs de liberdade em todas as batalhas contra o medo e o farisaísmo. Em ‘Os numes nos nomes’ justifica o apelido correia:

‘Vem por fim a justiça na Correia:

Perdoar vendilhões só a chicote’

Cidadã irreverente, profundamente afectiva e independente não se deixa nunca submeter pelo poder, benesses (mesmo camufladas) ou quaisquer grupos de pressão. Quando toma posição em qualquer causa ou defende este ou aquele projecto é sempre, com toda a ousadia, coragem e frontalidade em nome dos valores em que acredita.

Como dizia Rilke nas belíssimas Cartas a um Poeta só descobre a Poesia na Vida, quem a tem dentro de si… Natália, foi, no nosso tempo, a voz da Poesia em muitos lugares onde ela habitualmente está ausente.

‘A Poesia é a mais certa maneira de ser portuguesa’ diz na sua errância imóvel numa síntese, maravilhosamente bela da alma portuguesa.

E Natália é a voz da Poesia e da cultura na arte, no teatro, na tertúlia que ressuscita, na política e no Parlamento, onde todos com o maior respeito escutavam os seus apelos e ouviam as suas críticas contundentes e acutilantes.

Porque, quando a hora era de combate, ninguém esperasse brandura:

‘Não Antero, meu Santo, não me mato

antes me zango até ficar num cacto

quem me tocar, maldito que se pique’

Para além da poesia, no ensaio, no romance, no teatro ou na investigação literária pós sempre a marca da sua grande criatividade e do seu génio.

E com ela temos, com uma imensa força interior, a figura de Camões mais poética e mais romântica até hoje na peça Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, que teve o maior sucesso numa encenação magistral de Carlos Avilez.

Os valores da cultura, o reforço da identidade nacional na afirmação pela cultura foram sempre a sua grande aposta como Mulher inteligente que sempre foi e de rara sensibilidade.

Tive o particular privilégio de a acompanhar num dos seus últimos projectos nesta área: a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, em que se procurava apoiar, estimular e dinamizar todas as manifestações autênticas da nossa cultura desde as mais simples às que se impõem pela sua grandeza: o vidro da Marinha Grande, o canto das gentes de Manhouce, o culto do Espirito Santo, ao Painéis de Nuno Gonçalves ou o Convento de Cristo em Tomar… tudo o que na cultura é verdade, é nosso e nos distingue do resto do mundo…

De uma maneira muito bela e ao mesmo tempo irreverente dá-nos o sonho dessa Pátria: ‘Com as mãos nos bolsos o Poeta assobiava uma pátria de brancura e de paz’.

A sua religiosidade e profundo misticismo perpassa em toda a sua obra marcada pelo Espírito:

‘Basta vos esta ciência: onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito’

‘Porque da efémera vida o que lhe colhemos é o exercício da beleza que nos alimenta de sensações divinas’

E com toda a convicção e a força da alma que lhe conhecíamos fala-nos do culto que a empolga:

‘A única impiedade irremissível é o pecado contra o Espírito Santo’

E mais à frente:

‘Cristo não veio para nos induzir à vaidade do espírito de nos tornarmos mais morais. Apenas o amor passou a ser mais verdade desde que ele veio’

Na sua casa, aberta a todos os amigos, o espaço é de encontro e de fraternidade, casa de versos que pedra a pedra se reconstrói infinitamente…

Para todos nós, Natália foi e continua a ser um exemplo de uma Vida cheia: de coragem, de frontalidade, de amor por tudo o que é belo, autêntico, universal e humano!

Serenamente, deixemo-nos inundar pelo misticismo da sua Poesia – Vida:

‘E o interior da casa era uma hortênsia

e uma gota de orvalho era a janela’

E que aconteça a ‘ocupação do mundo pelas rosas’

E com ela comunguemos na certeza de que o tempo do ódio está a passar e que os valores da espiritualidade, do sagrado, dos sentimentos e da alegria vão regressar.